15.11.16

Entrevista de Martin Wolf ao Diário de Notícias: “Trump é instável e emocional. O mundo tornou-se imensamente imprevisível”

Entrevista a Martin Wolf, economista, jornalista e escritor. Comentador principal no Financial Times

Na ressaca das eleições norte-americanas, a referência do jornalismo económico mundial veio a Lisboa para a conferência Luzes e Sombras da União Europeia. Desassombrado, disse que a zona euro é uma máquina de produzir divergência, e que nada o leva a apostar no futuro da União Europeia.

Na conferência disse que a democracia não era imune à estupidez. Qual poderá ser o impacto global da vitória de Trump?

Ainda é demasiado cedo para sabermos, porque não sabemos ao certo o que ele vai fazer. Acho que é, potencialmente, um evento que vai transformar o mundo. Mas, vamos analisar os vários componentes… primeiro, o senhor Trump já afirmou claramente que não está empenhado nos princípios básicos da política americana do pós-guerra: não está empenhado na globalização, longe disso, ele é um protecionista; não está empenhado nas alianças estratégicas dos Estados Unidos, encara-as como meramente transacionais; está muito inclinado para o senhor Putin; e já indicou que a América não tem interesse em intervenções externas para promover a democracia, nada disso. É um abandono das posições fundamentais dos Estados Unidos. Segundo… ele mostrou estar empenhado numa política orçamental muito expansionista, que provavelmente será acompanhado por políticas monetárias mais restritivas. Isto pode levar a uma vasta valorização do dólar, a um grande aumento do défice externo. Vai funcionar como um incentivo temporário para a economia mundial, mas vai reforçar a pressão protecionista. E torna a via do protecionismo muito mais provável. Foi o que aconteceu no início dos anos 1980, no início da era Reagan. Mas, nessa altura eles avançaram para o Uruguay Round (oitava ronda negocial do acordo GATT, que levou ao nascimento da Organização do Comércio Mundial), e isso não vai acontecer com Trump. Por isso, acho que esta combinação vai acelerar o movimento da América rumo ao protecionismo. Acho que isso é potencialmente devastador, sobretudo nas relações com a China, porque a proteção contra a China pode desencadear verdadeiras guerras comerciais. Este é o segundo ponto, desestabilização macroeconómica e da política comercial. Em terceiro, obviamente, as políticas domésticas. Trump vai adotar políticas que vão provocar enormes convulsões sociais, à volta de questões como o aborto, por exemplo. Por isso, vamos ter uma amarga guerra cultural nos Estados Unidos. O senhor Trump já revelou muito pouco apego ao estado de direito, e vai escolher juízes para o Supremo Tribunal que o apoiem.

Referiu-se a Donald Trump, enquanto candidato, como defendendo uma forma diluída de fascismo. Como presidente, é de esperar esse rumo?

Sim. Acho que são esses os seus instintos, e acho que vão ser muito prejudiciais para os Estados Unidos. Mas, mais importante, vão sobretudo subverter o modelo americano. Em última análise, a sua eleição está a legitimar os autocratas por todo o mundo, que podem dizer “se eles o estão a fazer na América, porque é que nós não podemos fazer?” Para alguém como Putin ou Erdogan, esse tipo de política, se quisermos de ditadura plebiscitária, vai tornar-se mais legítima. Esta é a quarta enorme consequência – transformação interna e internacional. Por último, e em quinto lugar, o senhor Trump é claramente um indivíduo instável, emocional, hipersensível à crítica, e grotescamente mal informado – duvido que alguma vez tenha lido o que quer que seja -, o que quer dizer que o mundo acaba de se tornar imensamente imprevisível. Ele é o absoluto oposto do atual presidente, que sempre foi racional, calmo, focado, bem informado, que lê e escreve maravilhosamente bem – é um grande orador. Ou seja, os americanos escolheram um anti-Obama. Acredito que vão arrepender-se, mas acho que nós ainda vamos acabar por lamentar mais esta eleição do que os americanos.

Identificou uma coligação entre o eleitorado tradicional do partido conservador e o voto das classes operárias, por hábito mais próximas do partido trabalhista, como uma das explicações para a vitória do leave no referendo ao Brexit. Acha que estivemos perante uma coligação semelhante nos Estados Unidos?

Sim, é a mesma coligação. Claramente, os republicanos formaram uma coligação entre vencedores da economia, pessoas prósperas e bem-sucedidas, que não querem pagar impostos e veem o Estado como ineficaz – os republicanos tradicionais, pessoas que são culturalmente conservadoras -, e os brancos das classes médias e operárias, que sentem que o seu rendimento não está a aumentar, que o governo não está a fazer nada para as ajudar, que os negros e hispânicos estão a tomar os seus postos de trabalho, que as mudanças culturais desvalorizam os seus valores, e que, no fundo, querem reinstaurar o status quo. Isto não é nada de novo, isto é o tipo de coligação que, até certo ponto, sempre esteve presente nos movimentos fascistas. Mas, há uma diferença. Nos Estados Unidos e no Reino Unido existe um sentimento profundo de liberalismo económico, uma crença no mercado e no comércio livre, que não está presente em Trump, mas está muito presente no partido Republicano. Uma das dimensões deste movimento fascista, entre aspas, é na verdade o liberalismo económico e o comércio livre. Isso vai criar uma tensão entre o Presidente e o Congresso dominado pelo partido Republicano. Essa é de facto a coligação que venceu estas eleições. Uma combinação de pessoas de classe média, de trabalhadores amedrontados com o presente, e de pessoas bem-sucedidas que têm vastos interesses económicos que querem proteger.

Acha que há uma boa margem para desilusão dos dois lados do atlântico, entre os eleitores do leave e os eleitores de Donald Trump?

Sim, para mim é uma certeza…

…no curto prazo?

Bem, as coisas nunca mudam tão depressa. No caso do Brexit é diferente porque não esperamos que nada aconteça no curto prazo. No caso do Trump, ele poderá dar-lhes cortes nos impostos, e vai conseguir uni-los à volta de ataques contra pessoas de quem eles não gostam. Em suma, ele pode dar-lhes algumas coisas, mas não vai conseguir alterar a sua situação económica, porque não pode.

Acha que estes dois casos – Brexit e eleição de Trump – demonstram que as democracias ocidentais não estavam preparadas para lidar com a globalização?

Essa é uma questão muito, muito profunda. No fundo, são duas questões. No livro que escrevi sobre globalização há 12 anos, defendi firmemente que era perfeitamente possível conciliar a globalização com um estado social forte, mas nessa altura eu não estava a contar com uma crise financeira com a escala que tivemos, o que é muito importante…

…Ninguém a antecipou.

Bem, alguns conseguiram prever, mas em 2012 não eram muitos. Eu estava preocupado com o mercado financeiro, mas não com uma crise àquela escala. Acho que nos Estados Unidos boa parte da rede de segurança tinha desaparecido, no Reino Unido isso não aconteceu, mas na América o estado social tinha colapsado. Isso tornou as pessoas ansiosas, mas não as levou a pedir mais ajuda do Estado porque, nos Estados Unidos, veem isso como uma humilhação. A segunda coisa foi muito maior do que imaginava, e isso é relevante. Quando fiz o meu trabalho não previ que o impacto da China na indústria fosse tão rápido quanto foi. Acho que é importante perceber que a globalização que acabámos de atravessar – e essa é uma das ironias, esta fase está a terminar – não tem precedentes na história. Para responder à sua pergunta, não foi a globalização que alterou tudo, foi a globalização com a China. E a capacidade da China para aumentar as suas exportações de manufatura, para absorver tecnologia e começar a produzir, não só em produtos de baixa qualidade, mas ao longo de toda a cadeia de produção, tudo num período de dez anos, era em boa parte imprevisível para todo o mundo. Talvez tenha sido ingenuidade nossa, porque eles, afinal, só provaram que eram capazes de ser …chineses. Provaram que são trabalhadores, disciplinados e capazes como foram ao longo da história. Num período de dez anos, mudaram realmente boa parte da indústria mundial. Alguns países sobreviveram bem, como a Alemanha, porque produzem coisas que são incrivelmente difíceis de fazer – é essa a base do sucesso da indústria alemã. E na verdade, no Reino Unido não perdemos manufatura, porque já não tínhamos muita, e o nosso setor financeiro está ótimo, os chineses não são concorrência na alta finança ou nos serviços em geral. Por isso, a economia do Reino Unido não foi muito afetada pela globalização. Mas, os Estados Unidos foram. As velhas fábricas industriais foram destruídas, e isso provocou grandes choques. O mesmo é verdade para o sul da Europa e para outros países. Acho que devíamos ter previsto isto melhor, e devia ter havido mecanismos de proteção para a transição entre modelos. Mas, mantenho a opinião de que o principal fator que levou à perda de empregos não foi o comércio internacional, mas antes a tecnologia. Tem havido impressionantes avanços na produtividade industrial, mesmo impressionantes, é o único setor em que continua a haver avanços nessa área, com a robotização, por exemplo. Há 40 anos, 30 ou 40% da força de trabalho nos Estados Unidos e na Inglaterra estava na indústria, hoje é 10%. E os défices comerciais não explicam toda esta evolução, e vai acabar por chegar aos 2%. A indústria está a fazer o caminho da agricultura. Os políticos andam a prometer o regresso dos empregos na indústria, e isso não vai acontecer, a tecnologia não vai deixar, não é possível voltar atrás. Por isso, temos de avançar. Isto não se trata de um problema da globalização, trata-se de ser honesto com as pessoas, de prepará-las para o futuro e de criar economias que lhes garantam rendimento.

Acha que podemos ter novos choques, com uma nova vaga de robotização e com o recurso cada vez maior a sistemas de inteligência artificial? Acha que podemos estar a potenciar as forças que entraram em jogo no Brexit e na eleição de Donald Trump?

Acho que, no essencial, o choque provocado pelo comércio internacional acabou. As exportações chinesas pararam de crescer, e ninguém pode bater a China, é um caso único, a outra grande economia é a Índia, mas a Índia não vai ter o mesmo percurso da China. O que vai acontecer é que as exportações de outros países em desenvolvimento vão substituir os produtos chineses, e a China poderá entrar em mercados como o automóvel, mas produzindo-os aqui, na Europa. Por isso, o choque do comércio está a terminar, e agora devíamos estar a preocupar-nos, como dizia, para o choque tecnológico. Acho que nos principais países industrializados – e isto só não é verdade para a Alemanha e para o Japão -, a indústria já representa apenas uma pequena parte do emprego total, logo, vamos perder mais empregos, mas o principal impacto já aconteceu. Podemos perder mais uns 6 ou 7% nos próximos dez anos, é importante, mas o choque principal já passou. Agora, a questão coloca-se nos serviços. É claro que a tecnologia, de uma forma geral não só a robótica, vai levar a uma redução de empregos nos serviços. Mas, ainda não sabemos ao certo qual vai ser o resultado. Há pessoas no topo com funções muito, muito específicas e diferenciadas, que vão sobreviver e ter ajuda de “máquinas” com inteligência artificial. Depois há tarefas que não podemos entregar a máquinas, como todos os trabalhos que impliquem cuidar de outras pessoas, e essa é uma fatia muito importante do mercado de trabalho. Depois há outras tarefas, como conduzir um carro. Não sei, mas daqui a uns 20 ou 25 anos, não devemos ter ninguém a conduzir um táxi ou um camião. Não será uma mudança tão radical como quando nos livrámos de todas as pessoas envolvidas com os cavalos, mas haverá enormes mudanças económicas. Agora, o problema é que não tenho dúvidas de que vamos encontrar trabalhos, somos razoavelmente bons a encontrar e inventar trabalhos, mas a questão é o nível de rendimento que estará associado a esses trabalhos. O que me parece óbvio é que estamos a regressar a uma economia típica do século XIX, com imensa riqueza concentrada num número reduzido de mãos, e isso parece-me ser altamente indesejável. Por isso, tendo a pensar que temos dois grandes desafios – a distribuição da riqueza, quem possui os bens, e o sentido da vida. Muito do sentido que as pessoas dão à vida vem do trabalho, de desempenharem uma função profissional que é vista como útil e válida. Isso nem sempre foi assim, os aristocratas sentiam orgulho em nunca terem trabalhado, mas esta é a nossa sociedade. Será que vamos conseguir dar sentido à vida das pessoas sem que elas sintam o trabalho como sendo a parte central do que são e do que fazem? Talvez sim ou talvez não. A verdade é que estamos agora a entrar numa época de incerteza económica, social e política, e não estamos a lidar bem com isso. A maior parte das questões não têm respostas óbvias, e num certo sentido isto é tudo um subproduto do nosso sucesso; porque somos tão incrivelmente inventivos, somos tão bons a inventar coisas novas, que acabamos por minar tudo o que dávamos por garantido, todas as nossas velhas certezas.

Temos eleições na Alemanha, na França, um referendo em Itália. Devemos preparar-nos para mais surpresas?

Bem, os meus amigos dizem-me que o Renzi vai perder o referendo em Itália, e nesse caso demite-se. Acho que a Itália está em muito mau estado. Se me perguntarem qual o país com maior probabilidade de sair da Zona Euro, eu diria que é a Itália.

…Problemas com a dívida?

Problemas com a dívida, problemas económicos, a Itália está em queda permanente. Bem, Portugal está num estado semelhante… aliás, Portugal e Itália são os dois países mais parecidos, no sentido em que Portugal nunca beneficiou de um boom. A Espanha e a Irlanda tiveram um boom, a Grécia teve um boom, mas vocês não, o vosso boom aconteceu nos anos 1990. Portugal, na minha opinião, está em recessão ou estagnação há quase vinte anos, e a Itália também está nesse estado há quase vinte anos. As pessoas estão desiludidas, os jovens estão desiludidos, e os jovens mais brilhantes estão a sair do país. A questão é se a Itália “é estável?”, o argumento a favor é que é um país muito antigo, a população está em declínio, a taxa de natalidade é muito baixa, e como é um país envelhecido e os velhos não são revolucionários, nada vai acontecer. O argumento contra é que estão muito, mas mesmo muito fartos. Por isso, eu acho que a Itália está instável. Quanto à França, eu acho que a vitória de Trump… os meus amigos dizem-me que isso seria impossível, não sei, França é um país difícil de entender, mas se olharmos para a história francesa, o país pode estar muitos anos a acumular tensões e depois explodir. É uma estabilidade pontuada pela revolução, precisamente ao contrário do Reino Unido, nós fazemos tudo com muita calma, não temos uma guerra civil decente há mais de 400 anos (risos). Eu acho que a Marine Le Pen pode ser Presidente. Se a discussão for entre Marine e Juppé, ela pode ganhar. Hollande não tem hipóteses. E se for contra Sarkosy, também pode ganhar. Há muitos eleitores de esquerda que têm muita simpatia – é um pouco como no Brexit -, há muitos operários de esquerda que são a favor do protecionismo, são nacionalistas, não gostam do comércio livre, são desconfiados em relação à globalização. O Juppé é liberal muito inteligente, mas não é carismático e a Marine, que é politicamente muito mais hábil e arguta do que o pai, está a construir uma espécie de política “trumpista” que apela às classes operárias. Parece-me que ela pode ganhar. E, se ela ganhar, como é que vai funcionar o diálogo político com a Alemanha de Angela Merkel? A Angela Merkel, que muito admiro apesar de ter feito muita asneira na forma como lidou com a crise da Zona Euro, está firmemente agarrada à tradição alemã pós-fascismo. Uma das coisas mais espantosas no mundo, e é realmente espantoso, é que a mais estável das democracias ocidentais é a Alemanha. E porquê? Porque já passaram por isto. Estiveram lá, fizeram isso, e trouxeram uma t-shirt, como costumamos dizer… Eles sabem, no seu íntimo, ao que é que leva o fascismo, e de uma forma que nós não conseguimos imaginar. Com Angela Merkel – que eu acho que vai ganhar porque não há alternativa – e com a Marine Le Pen, como é que podemos gerir a União Europeia? São duas pessoas que, emocional e fundamentalmente, discordam em toda a linha. Acho que vai tornar a União Europeia completamente disfuncional. Espero estar enganado, porque sou um idoso que precisa de estabilidade, e acredito que o mundo que tínhamos não era lá muito mau, mas acho que não estamos de forma alguma perto do fim deste ciclo de desilusão e reação nas nossas democracias. E não vejo, literalmente, qualquer político convencional, com opiniões e visões convencionais, à altura dos acontecimentos. Nenhum, desde Obama.

E a esquerda social-democrata na Europa?

Parece que está morta, não é? Não sei… (longa pausa) talvez esteja enganado, mas acho que os social-democratas têm de se mover para a esquerda. Têm de tentar “vender” mais impostos, mais redistribuição, maiores défices orçamentais (nova pausa), e algumas políticas realmente radicais no que respeita à distribuição da riqueza. Contudo, precisam de fazer isto – e esse é o seu grande desafio – dentro do atual contexto de cooperação europeia. Não sei se vão conseguir essa combinação, e se vão conseguir tornar essas propostas credíveis aos olhos dos eleitores, porque os eleitores vão olhar para essas promessas e pensar que eles nunca as vão cumprir, porque o capital vai fugir, etc. Se eles continuarem onde estão, acompanhando no essencial a agenda do centro-direita e não oferecendo nada de diferente, então as pessoas vão dizer “se é para ter políticas de centro-direita, porque não escolher políticos de centro-direita que, de facto, acreditam nelas?” Renzi é o último líder social-democrata credível em todo o continente. Se ele falhar, tal como Hollande e Gordon Brown falharam, então podemos declarar a morte da social-democracia nos grandes países europeus – sobra a Alemanha, onde a social-democracia não está morta, mas está a morrer. Por isso, se eles não adotarem um discurso diferente, propostas diferentes, que não sejam loucuras… não acho que os eleitores europeus vão regressar ao socialismo puro, não acho que vão votar em alguém como Jeremy Corbyn, não acho que o comunismo em qualquer das suas formas seja “vendável” ao eleitor europeu, por isso tem de ser uma social-democracia revista, mas sempre dentro da tradição democrática. Se não fizerem isso, vão morrer.

O que está a propor é combater o radicalismo de direita com armas iguais, com um conjunto de ideias igualmente radicais, mas de esquerda?

Sim, certamente com mais radicalismo do que o que estão dispostos a arriscar atualmente. Acho que – e a minha análise política não é tão boa como a análise económica -, goste-se ou não, e eu não gosto, a posição que o centro tinha, de que podemos combinar um mercado mais ou menos livre com estabilidade económica, prosperidade, uma redistribuição de riqueza moderada, e uma contínua melhoria das condições de vida, essa visão centrista colapsou. E colapsou, no essencial, devido à crise financeira e à impossibilidade de criar níveis adequados de emprego. Colapsou de formas diferentes em diversos países, em Portugal devido ao desemprego e a uma recessão de vinte anos. Mas Portugal e a Itália têm problemas estruturais na economia que ninguém consegue resolver facilmente. Dizia que, a posição que marcava o centro desapareceu, o que quer dizer que vamos ouvir vozes cada vez mais radicalizadas. A extrema-direita, como já discutimos, é uma estranha mistura de mercado livre e nativismo/protecionismo. Por isso, a esquerda mais radical tem de ter uma resposta credível. E parece-me que terá de ser um pouco como a social-democracia que emergiu nos anos 1930 – o partido trabalhista de meados do século XX sem os sindicatos, porque o movimento sindical desapareceu.

…Um Estado mais forte?

Sim, um Estado mais forte, políticas industriais mais ativas, mas dentro do tal quadro de cooperação europeia. Devemos lembrar que o governo trabalhista no Reino Unido, que esteve na origem do Serviço Nacional de Saúde – e é muito difícil defender algo de semelhante agora -, foi o mesmo que esteve no nascimento da NATO. É o tipo de combinação… têm de dizer coisas como “vamos taxar as empresas”, “vamos taxar os ricos, vamos garantir que eles também pagam impostos”, “vamos tornar as nossas sociedades mais justas”, “vamos apoiar os operários”, “vamos reduzir as desigualdades nos rendimentos”, “vamos forçar as empresas a ser mais responsáveis”. É por aí que a esquerda tem de ir. E os políticos têm de ser mais combativos, porque o velho centro desintegrou-se. Só se mantém na Alemanha, porque a Alemanha está a ter enorme sucesso. É o único país desenvolvido em que o PIB per capita cresceu mais de 10% desde a crise, não há mais nenhum, mesmo nos Estados Unidos só subiu 4%. O rendimento disponível nos EUA e no Reino Unido, para a maioria das pessoas, não é maior agora do que era em 2007, e nós saímos muito melhor da crise do que outros países, mas as pessoas não sentem que estão a partilhar dessa prosperidade, logo a política torna-se mais radical, é inevitável. E tenho de dizer que temo muito mais a extrema-direita do que a extrema-esquerda. Pelo menos a extrema-esquerda moderna, se fossem comunistas, pensaria de outra forma, mas a direita radical, com as suas posições sociais reacionárias, com a xenofobia, com o protecionismo extremo, é muito assustadora. Para mim, soa demasiado aos anos 1930 e não gosto disso. E suponho que em Portugal também devem saber como é a extrema-direita porque a tiveram durante muito tempo, durante 48 anos. No caso de Portugal, e eu estive aqui pela primeira vez, devo dizer que apesar de tudo o país fez imensos progressos. É um país diferente, e têm muito a perder. Consigo entender perfeitamente porque é que querem tanto continuar a pertencer à União Europeia.

Disse a União Europeia é uma máquina de produzir divergência. Como é que se para a máquina?

Acho que como as coisas estão neste momento, com a estrutura que existe, não é possível. O único país que atravessou a crise com algum sucesso foi a Irlanda, mas é uma pequena economia com características absolutamente únicas. Como as coisas estão agora, com os enormes excedentes da Alemanha, e a enorme vantagem competitiva da indústria alemã, não vejo qualquer caminho alternativo plausível para os outros países. Mas, devo dizer, o BCE fez um trabalho muito melhor que eu esperava na gestão da política monetária, e tem sido de facto o único fator de recuperação na Zona Euro. Mario Draghi fez um trabalho espantoso, mas não é suficiente, não há mais nada. Não vai haver acordo orçamental, não vai haver um aumento no orçamento da União Europeia, não vai haver qualquer alteração nas relações de competitividade entre os estados. A Espanha tem algumas vantagens competitivas nos serviços e em áreas como a construção, e acho que talvez consigam superar este momento, estou ligeiramente otimista em relação à Espanha, mas estou muito pessimista em relação à Itália, e a Grécia, bem…, a Grécia é um caso perdido. Não vejo como a Grécia possa ser salva. A Grécia é uma tragédia, mas a Itália é muito mais importante, mais preocupante. E a França está presa na estagnação. Talvez se consiga reformar, tem o potencial para isso, mas vão ser dez ou vinte anos de trabalho árduo.

Disse na conferência que, no conjunto, não podemos assumir como um facto o futuro da União Europeia…

As pessoas exigem dos políticos respostas às suas preocupações. Se não houver respostas ao nível europeu, terá de haver ao nível nacional, e o mais provável, nesse caso, é que os políticos passem a candidatar-se ao poder com um discurso anti União Europeia. Vão dizer que “a UE falhou-nos, os políticos de Bruxelas falharam-nos, as políticas da UE falharam, temos de nos libertar”. É isto que Marine Le Pen diz, no essencial é isto que ela diz, ela está a candidatar-se contra a União Europeia. Acho que o próximo primeiro-ministro italiano vai ser alguém com este discurso. Depois, o que é que acontece quando um destes políticos chega ao poder? Podem ceder, como o Tsipras, porque a Grécia é muito dependente da União, mas num país grande como a França ou a Itália é mais difícil que os políticos consigam quebrar essas promessas de campanha. Então, podem pura e simplesmente sair da União. É um desastre, e uma vez iniciado esse processo, seja onde for, basta um país e a credibilidade de todo o processo é esmagada. O Brexit é um caso especial, apesar de ter atingido a credibilidade da UE, o facto é que o Reino Unido nunca esteve completamente dentro da União, tinha uma “relação especial” com a UE. É um caso único. Se outro país importante fizer o mesmo, o projeto europeu passa a parecer reversível, e quando começa a parecer reversível, é o fim. Por outro lado, se isso passar a ser uma ameaça séria, talvez a Alemanha comece a fazer as mudanças que é preciso fazer. Talvez seja uma forma de reformar a União Europeia. Eu não arriscaria um calendário, mas acho que nos próximos dez anos, talvez menos, ou vai ou racha. Isto não me parece nada estável. Espero estar enganado, espero mesmo estar enganado. Acho que com todos os seus erros, e não são poucos, incluindo a criação do Euro, a Europa tem sido uma fonte fantástica de estabilidade, democracia e progresso no continente europeu, mas atualmente parece-me demasiado frágil.

Mas, como é que se diz ao povo alemão que não podem ter uma economia com tamanhos excedentes. É contranatura…

Tem de ser dizer “aumentem os salários reais”, “gozem a vida!”, tornem-se mais prósperos… Bem, a resposta tem de ser uma de duas: ou ajustam a sua competitividade ou financiam os défices. Não há alternativa, porque conseguir que todos os outros deflacionem, numa zona que tem um nível inadequado de procura é impossível. O problema é que no ponto em que estamos neste momento, a Alemanha nem sequer reconhece que é esse o seu principal desafio, por isso, como é que se discute isto? Isto é uma visão demasiado pessimista. Acho que o que a Alemanha fez no pós-guerra é fantástico, quer ao nível político, quer ao nível económico. A economia alemã é, em muitos aspetos, absolutamente extraordinário. Mas, acho que eles já demonstraram que não conseguem ser um líder hegemónico bem-sucedido da Europa, porque olham demasiado para o seu próprio umbigo. Eles não fizeram o mesmo que os americanos depois da guerra, para que a economia mundial funcionasse. O líder hegemónico, como dizia o grande Charles Kindleberger, tem alguns deveres e um desses deveres é o de promover um mercado, e eles não o conseguem fazer. Sendo esse o caso, não estou a ver como é que eles vão conseguir por a Europa a funcionar.

 

Entrevista publicada no Diário de Notícias de 15 de novembro