13.02.17

Entrevista do Público à Presidente do IGCP, Carla Casalinho

Taxas de juro de 4% na dívida portuguesa “são aceitáveis”

Para Cristina Casalinho, presidente do IGCP, a agência que gere a dívida pública, o mais importante é gerir o risco de refinanciamento. De resto, considera normal taxas a 4%, havendo um crescimento superior, e apoiado por um excedente primário.

 

SÉRGIO ANÍBAL e LUÍS VILLALOBOS 

Cristina Casalinho é a responsável máxima da entidade que tem a difícil tarefa de garantir que, num mercado cheio de incertezas, pressões e riscos para Portugal, o Estado continua a conseguir financiar-se às melhores taxas de juro possíveis. A presidente do IGCP (a agência que gere a dívida portuguesa) assume que o facto de o BCE estar agora a comprar menos dívida portuguesa prejudica as taxas, mas acredita que neste momento esse efeito já está todo descontado pelos mercados, evitando-se assim novas surpresas. E explica como é difícil atrair mais investidores enquanto os ratings atribuídos pelas principais agências de rating não voltarem a subir, algo que, diz, dificilmente acontecerá já este ano.

O IGCP realizou uma emissão de dívida na quarta-feira e ficámos a saber que falou com o primeiro-ministro…
Não fui eu que falei com o primeiro-ministro, foi o primeiro-ministro que falou comigo, o que é um pouco diferente.

O Presidente da República também falou da emissão…
Eu, por acaso, tenho a dizer que não ouvi o comentário de nenhum. Só me disseram o que tinha acontecido…

Mas correu bem a emissão?
Correu bem. Tivemos uma procura forte em ambas as linhas, cumprimos o nosso objectivo, que era colocar entre 1000 e 1250 milhões às taxas de mercado. O que nos satisfez foi os preços das ordens. E depois do anúncio do leilão o mercado secundário melhorou, alinhando-se com os preços a que o leilão tinha saído. Acabámos o dia com uma redução das taxas no longo prazo de cerca de sete pontos.
Este ano é um ano um bocadinho diferente dos anos anteriores. Enquanto até ao final do ano passado havia uma tendência clara sobre a evolução das taxas de juro, toda a gente sabia que as taxas de juro iam descer, este ano há alguma incerteza sobre a evolução das taxas de juro. Os EUA já começaram a subir as taxas e disseram que o movimento agora ia ser um movimento continuado. Por outro lado, os indicadores económicos estão mais fortes, quer de crescimento, quer de inflação. Isto questiona a manutenção de taxas a níveis tão reduzidos. Portanto, os investidores estão-se a posicionar mais em maturidades mais reduzidas e não tanto em maturidades mais longas. No início do ano, o que nós vimos foi que os sindicatos com maturidades mais longas não foram os mais bem-sucedidos. Mas no início desta semana houve um elemento que contrariou esta tendência. Olhando para a emissão sindicada belga, para a procura que houve nos sete e nos 40 anos, a desta última foi muito mais forte. Isto também joga com as declarações desta semana de alguns responsáveis do BCE, que afirmam que o nível da inflação é relativamente baixo e que enquanto não virem a inflação ancorada nos níveis de referência continuarão a ver taxas de juro em níveis reduzidos.

O facto de o BCE estar a baixar os níveis de compra da dívida portuguesa é um factor fundamental para a subida das taxas de juro portuguesas?
Não lhe consigo dizer se é um factor fundamental, mas o que achamos curioso é que, por exemplo, a Irlanda a partir do início de Dezembro começa a registar uma subida das suas taxas mais acentuada. Isso é algo que, entre os países da zona euro, apenas acontece também com Portugal. E o único factor coincidente entre nós e a Irlanda são as limitações que o BCE tem na aplicação da política de compras.

Este é um problema que não se vai resolver para Portugal…
Não, não se vai resolver. A menos que nós tivéssemos necessidades de emissão gigantescas.

Não seria de aproveitar?
Uma coisa que o BCE sempre disse foi que iria monitorizar de forma bastante cuidada e atenta se havia distorções a nível do plano de financiamento dos Estados para aproveitar a política monetária. Eles querem que a política monetária seja completamente neutra, para não haver um Estado que se aproveite desta benesse. Todos os Estados mantiveram os seus planos de financiamento inalterados.

Que níveis de compra é possível prever por parte do BCE?
A indicação que já temos das compras que foram feitas em Janeiro parecem-nos um bom indicador daquilo que vai ser o volume normal daqui para a frente.

Sem o BCE a ajudar — e o programa de compra há-de eventualmente terminar — a dívida é sustentável, isto é, é possível a Portugal estar no mercado a financiar-se?
É possível.

Mas não é assustador estar-se tão dependente do BCE?
Não é assustador. Por um lado, a subida de taxas de juro da dívida portuguesa está enquadrada neste movimento que temos vindo a verificar desde o final do ano passado, em que toda a gente subiu. A França teve aumentos significativos, a Irlanda também. Praticamente só a Alemanha, a Bélgica, a Holanda e a Áustria é que não subiram. Por outro lado, esta diminuição da ajuda do BCE já está reflectida nos mercados. Esta incapacidade de o BCE comprar montantes significativos da dívida pública portuguesa está completamente descontado. Toda a gente já sabe qual é o montante que vai ser mais ou menos comprado. E o BCE nisso foi importante porque disse: “Nós queremos evitar efeitos-surpresa. Queremos continuar a comprar regularmente no mercado até ao fim do programa”. Portanto, em vez de ter grandes oscilações, o BCE garante que vai estar sempre com compras regulares, sem uma travagem brusca. Isso é muito importante, porque o suporte vai lá estar. Se, de repente, o suporte desaparecesse, isso é que poderia ser problemático. É o que habitualmente se diz: o que os mercados não gostam é de surpresas. Se o acontecimento já é completamente conhecido, não estamos à espera que haja alterações face ao statu quo.

Mas isto num ambiente em que as taxas de juro estão a subir em todo o lado…
As taxas subirem um bocadinho não é necessariamente mau para se registar uma normalização e os investidores voltarem a sentir-se confortáveis com a dívida pública europeia.

No nosso caso, subir um bocadinho significa o quê?
Vai ser um nível mais alto do que aquilo que gostaríamos.

A normalização significa que vamos ao mercado a uma taxa que está entre 4% e 5%…
Eu não diria isso. Depende dos prazos. Há uma coisa que as pessoas se esquecem: nós gostamos muito de nos comparar com a Espanha, Itália ou Irlanda; a questão é que qualquer um destes países não está em grau especulativo, nós estamos. E, portanto, em consequência disso, há investidores que antes da crise nos compravam e que nos deixaram de comprar. Actualmente ainda nos compram na margem porque acham que a nossa taxa de juro é atraente, mas a maior parte dos investidores não pode comprar dívida pública portuguesa de qualquer maneira porque Portugal só é investment grade por uma agência de rating. As grandes gestoras de fundos podem comprar porque têm fundos dedicados a mercados emergentes, que são estratégicos ou tácticos e que não têm restrições de rating. Esses fundos são tão grandes que têm sempre uma parte para alocar com alguma discricionariedade. O que acontece é que os mais tradicionais, por exemplo as grandes seguradoras ou os fundos de pensões, não têm essa discricionariedade. E, aí, eles vêm aos nossos sindicatos ou leilões, mas com uma capacidade muito mais limitada.

Há muitos fundos especulativos a comprar dívida portuguesa?
Eu não lhes chamaria especulativos. Todos os investidores são importantes, desde que haja diversificação. Uma coisa que todos aprendemos nos últimos anos é que a envolvente varia muito rapidamente e não podemos depender de um produto de uma forma muito significativa nem de um tipo de investidor ou de uma geografia. O que temos é de diversificar.

Agora não temos muita variedade, estamos com mais de 50% de gestores de fundos…
Mas a questão é que eles são variados. Se se combinar isso com as geografias, vê-se que estas são bastante variadas. Os 50% dos gestores de fundos existem já há algum tempo porque as seguradoras e os fundos de pensões baixaram, mas esses são os que estão constrangidos pelos ratings.

Eles não dão importância à DBRS, que dá um rating “grau de investimento” a Portugal?
Infelizmente, não. Ligam só às três maiores [Standard & Poor’s, Moody’s, Fitch]. Nalguns casos só às duas maiores. E às vezes é, das duas maiores, o [grau] pior.

Quando é que acha possível que uma das três grandes levante o rating português?
Nós já deixámos de fazer prognósticos. A maneira como as decisões das agências são tomadas é que, primeiro, há um outlook positivo e depois só na avaliação seguinte é que pode haver uma melhoria do rating. Não me parece que nesta ronda tenhamos uma melhoria do outlook. Já tivemos este ano informação da Moody’s e da Fitch sem subidas, e não me parece que a S&P, que tem estado sempre um pouco atrasada em relação às outras, tendo sido mais lenta na subida, o vá fazer.

Portanto, teremos que esperar pelo menos mais seis meses, é isso?
Mais seis meses para a subida do outlook e, portanto, uma mudança de rating antes de 12 meses parece-me difícil.

Qual é o principal bloqueio a uma subida do rating por parte das agências? A dimensão da dívida?
Há três aspectos em que os relatórios das agências coincidem: o nível global de endividamento da economia como um todo é elevado, a dívida externa é das mais altas do Mundo — eles já nem distinguem se a dívida é pública ou privada, olham muito mais de uma forma abrangente. O segundo factor é o crescimento e o terceiro o sector bancário, nomeadamente por causa do aspecto das responsabilidades contingentes.

Então vamos demorar muito até ter investment grade
Não digo isso. Mas o que nós temos sempre é de tirar o melhor proveito possível das condições existentes. E construir um caminho de maneira a que, no futuro, consigamos ter melhores condições.

Pelo que disse, as agências já não estão tão centradas na questão do défice, é isso?
É isso, mas também porque já têm evidências de que as coisas correram bem este ano. Se as coisas tivessem corrido mal, provavelmente estariam outra vez centradas. Nós, com a dívida, temos um problema de stock porque a dívida é elevada. Mas só conseguimos resolver esse problema se primeiro dermos um passo, que é o de resolver o problema do fluxo. Agora já há evidência que o fluxo está contido, quer na componente externa, quer na vertente orçamental. E temos de melhorar a componente do fluxo de maneira a dar dentadas, e ir cortando o problema do stock. E esse problema, nós já sabemos, não é possível resolvê-lo sem crescimento. Não há história, em economias avançadas, de progressos de desalavancagem sem crescimentos fortes. Se nós pensarmos nos grandes movimentos de desalavancagem na Europa, que foi, por exemplo, o irlandês ou o belga, houve sempre movimentos de grande crescimento. 

As preocupações dos investidores internacionais que falam convosco são semelhantes às das agências de rating? Eles olham mais para o défice, para o crescimento, para o BCE?
As preocupações não são muito diferentes. Os mais preocupados com o BCE até são os hedge funds. Um fundo global compra e fica em carteira… faz algumas variações, mas a posição está relativamente estabilizada. Já os hedge funds têm um prazo para deter os títulos, não os detêm normalmente mais de seis meses. Portanto, eles estão mais preocupados, porque, se não conseguirem que mais alguém lhes compre a posição, querem saber que, pelo menos, há lá um que vai sempre comprar, que é o BCE. 

E os investidores, estão preocupados com a possibilidade de uma reestruturação de dívida?
Não tenho ouvido falar nenhum investidor sobre isso. Em 2012, sim. Eu vim para o IGCP em Junho e o primeiro roadshow que fizemos foi em Setembro, à Alemanha. E houve uma ou duas reuniões em que a primeira pergunta foi: “Vocês vão pagar?”. Desde essa altura nunca mais ninguém colocou questões sobre reestruturação.

Temos vários motivos de incerteza: Trump, “Brexit”, eleições europeias, a Grécia. Gerir a dívida num cenário destes força a que se esteja a pensar que tudo pode mudar de um momento para o outro…
Sim, por isso é que, nos fóruns de agências de gestão da dívida, com o que toda a gente se preocupa é em gerir a incerteza. E por isso é que toda a gente fala cada vez mais em avançar muito rapidamente com os planos de financiamento. Este ano, toda a gente diz que quer executar rapidamente os seus programas de financiamento. No fundo, criam almofadas. No caso belga, por exemplo, já fizeram duas emissões sindicadas até Fevereiro.

É por isso que quer 75% das necessidades do ano satisfeitas até ao final de Junho?
É porque normalmente é a prática.

Mas não estamos nós a tentar antecipar também as emissões?
Sim, vamos tentar antecipar. Mas o programa de compras do BCE traz algumas restrições. Trazer 3000 milhões de euros de dívida para o mercado numa emissão sindicada, sabendo que o BCE só pode absorver cerca de 700 milhões de euros por mês, é complicado, porque a absorção é mais lenta. Quem fica com os títulos vai demorar mais tempo a vendê-los ao BCE. Isto cria oscilações nas taxas que não são desejáveis. Por isso é que, se se perguntar aos emissores de dívida dos vários países, aquilo que eles dizem que mudou na execução dos programas deles é: mais leilões, mais pequenos, com mais linhas.

Mas o ideal seria antecipar, não é?
Nós também o fizemos. Em 2015, fizemos um sindicato de 5000 milhões, em 2016 de 4000 milhões e este ano de 3000 milhões. E no ano passado não fizemos qualquer leilão em Fevereiro, mas este ano já fizemos. Estamos mais ou menos ao mesmo ritmo.

Há um cenário de taxas de juro a dez anos nos 4%, a mudança de política monetária que pode fazer subir mais as taxas, e uma série de riscos… Até onde é que podem ir as taxas portuguesas sem que entremos numa situação insustentável? A presidente do Conselho de Finanças Públicas, Teodora Cardoso, arriscou o número de 5%… É este o patamar?
Não sei. O que temos de privilegiar é o risco de refinanciamento. Se eu tiver um mercado que ainda permite financiar-me, a níveis… na medida em que eu tenho taxas de crescimento nominais superiores à taxa de juro que pago, o meu stock pode diminuir. E vai diminuir ainda mais se eu tiver um superavit primário. Se eu continuar a ter superavits primários como aconteceu em 2016 e que espero que volte a acontecer este ano, se tudo continuar a evoluir nesse sentido, taxas de 4% são aceitáveis. Só tivemos taxas muito longe dos quatro e qualquer coisa no pico da crise, em 2011, em que estávamos fora do mercado. Taxas em torno dos 4,2% são taxas historicamente normais. O que significa que, se temos taxas médias em torno dos 4,2%, em princípio podemos até ter taxas de financiamento mais altas.

Mas mesmo com um excedente primário vamos demorar muito tempo até cumprir o critério europeu de não ter um volume de dívida superior a 60% do PIB. Talvez o quê, 60 anos?
Ou não. Sessenta anos é daqui a muito tempo, e de certeza que haverá um enquadramento completamente diferente deste. Para o bem ou para o mal.

Está com curiosidade de ler o documento de trabalho que está a ser elaborado por um grupo formado por membros ligados ao Governo e ao Bloco de Esquerda? 
Tenho sempre curiosidade, nem que seja curiosidade intelectual. Sou uma pessoa curiosa.

E preocupada? 
Não. Mas curiosa, sim. Dívida é um tema que me interessa, sempre me interessou.

 

Artigo publicado no Jornal Público