Impressiona o compungido ar grave e sério que os membros do Governo põem quando fazem juras de amor pelo consenso político com o Partido Socialista na execução do Memorando da ‘troika’.

Em discursos longos e pausados, referem-se à extrema relevância do "factor distintivo" que esse consenso representa, para terminarem no tradicional apelo ao "sentido das responsabilidades do PS". Mas não impressiona menos a hipocrisia política que vai em tudo isto.

A verdade é que o Governo optou, desde o início, por uma sistemática estratégia de confrontação com o Partido Socialista, que é totalmente incompatível com um esforço sério de valorização do consenso político. E quem semeou ventos não pode agora surpreender-se com as tempestades.

Recordemos os factos. Foi o Governo que inventou a teoria do "desvio colossal" no 1º semestre de 2011, como forma de tentar responsabilizar o PS pela sua decisão de cortar no 13º mês (versão, aliás, desmentida pelos dados do INE, que provam que essa medida não era necessária e que o desvio orçamental, sem receitas extraordinárias, foi até maior no 2º semestre do que no 1º). Foi o Governo que, unilateralmente, escolheu prosseguir uma errada política de austeridade "além da troika", feita de cortes nos subsídios, aumentos adicionais do IVA e reduções drásticas nos serviços públicos e nas prestações sociais - medidas que estão a ter sérias consequências no agravamento da recessão e do desemprego. Foi o Governo que decidiu rejeitar todas as propostas construtivas do PS para melhorar o Orçamento de 2012. Foi o Governo que decidiu negociar com a ‘troika' três revisões substanciais do Memorando, ignorando sempre a existência do PS. Foi o Governo que decidiu excluir o PS da negociação do resgate financeiro da Madeira. Foi o Governo que, através do Ministro das Finanças, resolveu passear-se pelo Mundo para vender a extraordinária tese de que, mais do que uma crise sistémica das dívidas soberanas na zona euro, a actual crise financeira é culpa das "políticas expansionistas" do PS para enfrentar a crise internacional, o que faz de Portugal, e cito, "um exemplo a não seguir". Foi o Governo que optou por rejeitar liminarmente a proposta do PS para que, em complemento do Tratado intergovernamental, se promova na Europa um Pacto para o Crescimento. E, finalmente, foi também o Governo que optou por ignorar o PS na elaboração do Documento de Estratégia Orçamental 2012-2016, recentemente entregue em Bruxelas, permitindo-se dar por adquirida, certamente por telepatia, a "consensualização" com o Partido Socialista - mesmo sabendo que o Documento apresentado reincide na austeridade além da ‘troika' e que o seu horizonte vai muito para lá da vigência do Memorando e até da própria duração desta legislatura!

A verdade é esta: ao sentido das responsabilidades de que o PS deu provas, respondeu o Governo com uma absurda estratégia de confrontação - e é aí que está a raíz do problema. Essa estratégia de confrontação cavou uma divergência política, e de políticas, cada vez mais insuportável, hoje agravada por sucessivas revisões de um Memorando que, manifestamente, já não é o que era. Torna-se necessário, portanto, lembrar o que deveria ser óbvio: é preciso escolher entre confrontação e consenso, pela simples razão de que não é possível uma coisa e outra ao mesmo tempo. Sucede que os factos aqui recordados provam, para lá de qualquer dúvida razoável, que o Governo, diga lá o que disser, já fez a sua escolha. Há muito tempo.

 

Artigo publicado no Diário Económico