A secção de Portugal do Centro de Informação Regional das Nações Unidas para a Europa Ocidental entrevistou o eurodeputado Pedro Silva Pereira (membro do Partido Socialista Europeu, eleito por Portugal), autor de um relatório  que pede aos países da União Europeia (UE) para reconfirmarem o compromisso de afetar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) à Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD).

O Parlamento Europeu (PE) aprovou esse relatório, em sessão plenária, no dia 19 de maio, e é o seu contributo para a definição da posição negocial da UE na Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, promovida pelas Nações Unidas, que terá lugar em Adis Abeba, na Etiópia, de 13 a 16 de julho.

 

Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) – que deverão ser aprovados numa cimeira da ONU, em setembro - representam uma agenda ambiciosa de transformação até 2030. A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, sigla em Ingês) estima que a sua implementação vai custar 2,5 biliões de dólares por ano. O que se vai debater na conferência em termos de mobilização desse dinheiro?

A agenda do desenvolvimento pós-2015 exige a mobilização de todos os recursos disponíveis em todas as fontes possíveis. Isso significa que há necessidade de um nível mais elevado de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), e que esta seja complementada pela mobilização dos recursos domésticos dos países em vias de desenvolvimento; que até agora têm desperdiçados por via da corrupção, de fluxos financeiros ilícitos ou simples ineficiência. Em terceiro lugar, é importante fazer um alinhamento do setor privado com os ODS. Só a mobilização conjugada destas três grandes fontes de financiamento permitirá responder aos desafios, mas a APD tem um poder catalisador. Logo, apesar da sua menor dimensão, em volume de dinheiro, em relação aos outros recursos disponíveis, é um elemento fundamental para captar mais recursos.

 

A promessa da União Europeia (UE) de alocar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) à APD já tem várias décadas, mas apenas quatro Estados-membros a cumprem, com a média da UE a ficar nos 0,4%. No relatório que fez, e que foi aprovado como posição do Parlamento Europeu (PE) para Conferência de Adis Abeba, propõe que tal valor seja atingido em 2020. Qual deverá ser a estratégia para realmente convencer os governos?

É verdade que os países desenvolvidos não honraram o compromisso de afetar 0,7% do GDP à APD. Há duas maneiras de o conseguir: que os governos estejam convictos da real importância deste objetivo, e através da pressão política feita pela comunidade internacional e pela sociedade civil. Foi essa pressão política que exercemos através da aprovação do relatório que defende que a UE deve cumprir essa meta e, o mais tardar, fazê-lo até 2020, de modo a viabilizar a concretização dos ODS. Vejo com satisfação que essa posição do PE é apoiada pelos facilitadores da Conferência de Adis Abeba, que trabalham na redação do documento final. Infelizmente, esta posição não foi corroborada pelo Conselho da UE, o que significa que há vários Estados-membros que resistem a um compromisso tão ambicioso e querem diferi-lo até 2030. Mas se estamos a falar de financiamento da agenda de desenvolvimento, que vai ser posta em prática entre 2015 e 2030, é claro que assegurar os meios de financiamento apenas no último ano nos deixa aquém do necessário para alcançar os objetivos. Espero que haja mais bom senso e, se não houver, então que a pressão política sobre os decisores possa produzir efeitos.

 

Quando apresentou o relatório, em maio passado, disse que  a crise da migração no Mediterrâneo é um exemplo de como é preciso apostar mais na ajuda ao desenvolvimento. O que é que falhou até agora e o que deve mudar?

Realmente não podemos pensar nos problemas apenas quando nos chocamos perante as imagens dos refugiados no Mediterrâneo. Temos de pensar nessas situações no momento em que decidimos que financiamento afetar para a cooperação para o desenvolvimento. Há muito a fazer no combate ao tráfico de seres humanos, no apoio de emergência aos refugiados, nos meios de salvamento no mar. Mas é preciso atacar as causas deste problema que são a instabilidade política que se vive no Médio Oriente e em algumas zonas de África e o problema do subdesenvolvimento. Penso que é um problema de prioridade política porque temos vindo a assistir à diminuição da APD. Por exemplo, recentemente, e face a problemas orçamentais, a primeira decisão do governo finlandês foi reduzir a APD. O PE apoiou o meu relatório com larga maioria - 85% dos votos a favor –, pedindo que a UE tenha uma posição inspiradora para outros parceiros internacionais, uma posição generosa.

 

Falou de outras fontes de financiamento além da APD e uma das que vai estar em discussão é uma maior cooperação a nível fiscal. A verdade e que a própria UE perde 1 bilião de euros por ano com a elisão fiscal. Até que ponto será possível criar um órgão intergovernamental sob auspícios da ONU para que haja mais cooperação na cobrança e na boa aplicação dos impostos?

Um dos problemas que ameaçam o sucesso da Conferência de Adis Abeba é exatamente a falta de sinais de um acordo ambicioso quanto à APD. Isso poderá ter como consequência um excesso de discussão sobre APD, deixando de dar atenção a outros capítulos importantes tais como o da cooperação fiscal, que é essencial. O PE e várias organizações não governamentais defendem que é preciso mais cooperação fiscal internacional por forma a promover sistemas mais justos e eficientes, capazes de combaterem as desigualdades e de mobilizarem recursos que hoje se perdem, mesmo nos países desenvolvidos, porque vão para paraísos fiscais e outros mil e um esquemas de evasão fiscal. Para que se possa ter sucesso nesta área, é preciso que os países sejam verdadeiramente parceiros e o PE defende a criação de um organismo no âmbito das Nações Unidas que promova a cooperação fiscal. Já existem instâncias desse género, nomeadamente no âmbito da OCDE, mas os países em vias de desenvolvimento não participam em pé de igualdade. Só no âmbito das Nações Unidas é que isso pode ser feito de forma justa e equitativa.

 

Falou também da necessidade de parcerias público-privadas. Que modalidades defende, sabendo que muitas multinacionais fazem lucros milionários pela extração de recursos naturais de países menos desenvolvidos, que depois transformam fora desses países, ganhando as mais-valias? Muitas vezes é dado o exemplo da Alemanha: um dos maiores exportadores de café do mundo, sem uma única planta de café no seu território. 

Este capítulo do alinhamento do setor privado com os ODS pode ter feito de várias maneiras que não apenas as parcerias público-privadas. O tipo de investimento que é feito, a regulação e monitorização desse investimento - sobretudo em setores sensíveis como o dos recursos naturais – têm de estar em sintonia com os princípios do desenvolvimento sustentável. Não podemos ser ingénuos e pensar que as atividades económicas que se guiam pelo lucro vão mudar tudo de um momento para o outro, em nome da chamada responsabilidade social corporativa. Mas é preciso que os incentivos apontem na direção certa.

 

Vai haver oportunidade na Conferência de Adis Abeba para discutir o tema do alívio da dívida pública, que é uma das áreas mais complexas no fluxo de recursos financeiros entre os países e um dos legados do colonialismo? Há economistas que dizem que muitos países do chamado Sul menos desenvolvido financiam, por essa via, o bem-estar do chamado Norte desenvolvido, com os países africanos à cabeça como exemplo.

Tenho as maiores dúvidas de que exista um ambiente favorável para fazer uma discussão, que seria muito importante, sobre as condições de organização ao nível multilateral dos processos de reestruturação de dívida pública dos países em vias de desenvolvimento. Infelizmente, não temos recebido sinais muito encorajadores. O debate na Europa sobre a dívida pública, no âmbito da crise financeira, contamina esse debate, com muita gente a confundir questões que são historicamente muito distintas. Mas creio que aprendemos todos com o caso da Argentina: que a ausência de um quadro de regulação multilateral da reestruturação da dívida pública é muito negativo. Seria muito importante que a comunidade internacional pudesse fazer um avanço significativo nesse domínio, mas não me parece que isso possa acontecer em Adis Abeba.

 

O relatório do PE defende que 50% da APD seja canalizada para os países menos desenvolvidos, desviando fundos que antes era transferidos para os países de rendimento médio, agora também chamados de economias emergentes. Mas dois terços dos pobres do mundo – número que tem vindo a diminuir, mas cuja cifra ainda está perto dos mil milhões de pessoas - vivem nesses países, como por exemplo a Índia. O que espera em termos de convergência de posições com os países do chamado bloco BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul)?

A distribuição dos esforços em relação ao financiamento do desenvolvimento não se pode colocar hoje nos mesmos termos em que se colocava na primeira conferência, em Monterrey (2002) porque muita coisa mudou. A afirmação de economias emergentes mostra que algumas delas têm possibilidades de responderem de forma mais consistente aos problemas do desenvolvimento, e que devem assumir esse propósito nos seus objetivos de política pública. Nesta Conferência de Adis Abeba fazemos um apelo a uma convergência de esforços mais alargada ao nível da comunidade internacional, que não passa apenas pelos maiores doadores.  Já os países menos desenvolvidos precisam da APD de forma incontornável, porque não têm alternativas. Se não assegurarmos que uma fatia expressiva da APD vai para os países que realmente mais precisam, esses países ficam sem o mínimo para fazerem face aos objetivos de desenvolvimento. É uma questão de prioridades e temos de dar a esses países uma atenção especial.

 

O que faria desta Conferência um sucesso?

O sucesso significa compromissos concretos. E isso não é apenas um número, um valor sobre quanto se vai gastar em cooperação para o desenvolvimento, nem mesmo a meta dos 0,7% de APD. Esse é um número conhecido, velho. O sucesso é associar esse valor a um calendário para que seja realizado e a um instrumento de monitorização da sua efetiva implementação.