David Cameron quis brincar com o fogo e queimou-se. O que agora interessa, todavia, é que as chamas que ateou ameaçam seriamente o futuro do Reino Unido e o futuro do projeto europeu. Ao responderem como responderam à pergunta singela do referendo, os eleitores britânicos - que, convém lembrar, já tinham dado a vitória à extrema-direita do UKIP nas últimas eleições europeias, de 2014 - deixaram um mundo de perguntas sem resposta e mergulharam o país na total incerteza: será possível conter as tremendas ondas de choque que já se anunciam nos mercados e na economia? Estará o próprio Reino Unido à beira da desagregação, dado o reforço das pressões dos separatistas na Escócia e dos unionistas na Irlanda? Que tipo de relação pretende o Reino Unido negociar com a União Europeia e o seu Mercado Único? Quanto tempo demorará esta transição? Que estatuto será dado aos milhares de imigrantes, muitos dos quais portugueses, que hoje vivem e trabalham no Reino Unido? Que protagonismo político terá o líder da extrema-direita, o que mais alto cantou vitória na noite eleitoral?

Esta infindável sucessão de perguntas sem resposta impõe que se olhe ainda com mais atenção para este resultado: a verdade é que os britânicos preferiram correr todos os riscos de um caminho incerto mas autónomo do que continuar na União Europeia - e isto dá que pensar. É preciso tentar compreender o que aconteceu, se queremos encontrar as respostas políticas adequadas. Certamente, há na escolha dos britânicos motivações muito diversas, incluindo motivações xenófobas, securitárias e protecionistas frontalmente contrárias aos valores europeus e que só podem ser rejeitadas. Mas há também, é preciso reconhecê-lo, uma profunda aspiração democrática de uma multidão de descontentes com este projeto europeu em grave crise de valores e de resultados. Bem vistas as coisas, foi essa aspiração democrática - que assume claramente o confronto entre soberania e integração europeia, entre Parlamento nacional e burocracia de Bruxelas - a grande vencedora deste referendo traumático. A questão democrática do funcionamento da União Europeia, que hoje faz moda e anima o crescimento da extrema-direita e de uma certa esquerda soberanista por essa Europa fora, é a questão central a que é preciso dar resposta se o projeto europeu quer ter futuro.

Mais do que nunca, a Europa precisa de lucidez e liderança. Infelizmente, em vão se procura nas reações dos líderes europeus uma frase marcante à altura deste momento histórico ou sequer o mais vago sinal de que sabem por onde começar a apagar o fogo que arde com cada vez mais intensidade, à medida que se somam os pedidos de novos referendos. Sabe-se, isso sim, que marcaram umas quantas reuniões e disseram coisas sobre um tal Artigo 50. Isto começa mal.



Artigo publicado no Jornal de Notícias