O acordo alcançado na véspera de Natal entre a União Europeia (UE) e o Reino Unido é uma excelente notícia: por um lado, evita o cenário catastrófico de um ‘Brexit’ litigioso e desordenado, por outro, estabelece as bases para uma futura cooperação comercial, económica e política que é útil para ambas as partes. É um precioso exercício de controlo dos danos causados pelo ‘Brexit’.

Foi uma UE firme e coesa aquela que defendeu os seus interesses na mesa das negociações. Todavia, o momento não é de celebração. No fim das contas, a UE perde, pela primeira vez, um dos seus membros e logo uma das suas economias mais poderosas. Esse é o facto maior que a História da Europa registará.

Quatro longos anos e meio passaram desde o referendo do ‘Brexit’, em junho de 2016. Três primeiros-ministros e dois acordos depois, já é possível concluir que o mundo de maravilhosas facilidades prometido pelo ‘Brexit’ não se confirmou. Uma a uma, as ilusões vendidas aos eleitores foram sendo abandonadas à medida que a realidade se impunha. E a realidade é simples: o Reino Unido não pode manter os benefícios da pertença à UE ao mesmo tempo que escolhe o seu lugar do lado de fora.

Qualquer acordo implica um compromisso que obriga as partes a evoluir das suas posições negociais de partida — e este não é exceção. Não há dúvida, porém, que tanto o acordo de saída como este Acordo de Comércio e Cooperação só foram possíveis graças ao sacrifício das “linhas vermelhas” que alimentaram a propaganda do ‘Brexit’. Vejamos: reconhecimento dos direitos de residência dos cidadãos europeus e proibição de discriminação entre países da UE na atribuição de vistos; respeito pelos compromissos financeiros assumidos com a UE; regime especial para a Irlanda do Norte e controlos fronteiriços no Mar da Irlanda; cláusula de não-regressão face aos padrões europeus de proteção ambiental, social e laboral; princípio de não-distorção da concorrência por via de subsídios ou outras ajudas de Estado; garantia de acesso dos pescadores europeus às águas britânicas; sistema de resolução de litígios e sanções por incumprimento, incluindo medidas unilaterais de retaliação em caso de futuras divergências regulatórias.

É certo, este é um acordo comercial sem precedentes, em que o comércio de bens se continua a processar isento de tarifas e quotas, mas as coisas não ficarão como antes: o Reino Unido fica sem as vantagens de pertencer à UE, ao mercado único e à união aduaneira; o acréscimo de burocracia aduaneira e de carga fiscal trará custos e dificuldades logísticas para os agentes económicos; as instituições financeiras britânicas perdem o livre acesso ao mercado europeu; os cidadãos perdem a liberdade de circulação e os jovens britânicos ficam de fora do programa Erasmus. Decerto, o Reino Unido enfrentará os desafios do futuro orgulhosamente, mas também mais só.

Ainda assim, o acordo a que se chegou não é apenas positivo por conter danos. Ele estabelece um novo quadro de cooperação de enorme importância estratégica, política e económica. Portugal, com a sua relação especial com o Reino Unido, tem aqui uma boa oportunidade, a começar já na presidência portuguesa. Ninguém melhor do que Portugal para liderar a construção de uma nova relação entre a União Europeia e o Reino Unido, a benefício de ambas as partes.

Artigo publicado no Expresso de 31/12/2020 (ligação para o artigo).