Ainda me lembro de o ver com os olhos fixos na câmara de televisão e aquele tom firme, quase zangado, de quem traça, com solenidade, uma linha vermelha intransponível:

"sou politicamente incompatível com a TSU dos pensionistas", disse ele. Para logo acrescentar: "não permitirei que se estabeleça em Portugal um cisma grisalho". Dito assim, com aquela entoação e aquela linguagem colorida de que só Paulo Portas é capaz, até parecia a sério.

Foi essa imagem que me veio à memória quando vi o Governo do mesmo dr. Paulo Portas anunciar que os actuais pensionistas da CGA, com pensões a partir de 600 euros (!), atribuídas até 2005, vão sofrer um corte de 10% nas suas pensões. Tudo, é claro, só enquanto durar a actual conjuntura: assim que o crescimento económico alcançar os níveis que nunca teve e o défice baixar para um valor que nunca atingiu, volta tudo ao normal. Aprovada a medida em Conselho de Ministros, não há que ter mais dúvidas: o agora vice-primeiro-ministro, outrora campeão dos direitos dos pensionistas, assinou por baixo.

Como já tinha feito quando este mesmo Governo PSD/CDS eliminou duas prestações mensais aos reformados ou os sujeitou à Contribuição Extraordinária de Solidariedade (fora o mais que tentou fazer mas o Tribunal Constitucional não deixou).

Sabemos o que dirão: desta vez é diferente. Agora, não se trata de cortar nas pensões de todos os pensionistas mas apenas nas pensões dos aposentados pela Caixa Geral de Aposentações. Infelizmente, porém, não me lembro do CDS ter explicado na campanha eleitoral que a sua exacerbada defesa dos pensionistas não valia para os direitos de todos os reformados e muito menos que era compatível com cortes brutais em centenas de milhares de pensões logo a partir dos 600 euros. Tal como não me lembro de o partido que na oposição se apresentou como "partido dos pensionistas" ter alguma vez admitido que a convergência entre o sistema público e o regime geral da segurança social devia ser feita através de medidas retroactivas, afectando as pensões já atribuídas.

O Governo sabe que tem aqui, mais uma vez, encontro marcado com o Tribunal Constitucional. E embora a jurisprudência do Tribunal Constitucional seja razoavelmente flexível quanto ao alcance do direito à pensão, é bem provável que o Governo tenha de ouvir o Tribunal Constitucional explicar que este corte das pensões, precisamente por ser diferente, além de inconstitucional por violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, é também inconstitucional por violar o princípio da confiança.

Há vários anos que o Tribunal Constitucional submete as medidas legislativas susceptíveis de violar o princípio da confiança a um teste, em quatro fases. Assim, há razões para proteger a confiança quando, primeiro, o próprio legislador tenha gerado expectativas; segundo, quando tais expectativas devam ser consideradas legítimas; terceiro, quando os visados tenham feito planos de vida tendo em conta a previsão de continuidade do comportamento estadual; e, quarto, quando não ocorram razões de interesse público que justifiquem suficientemente, em medida correspondente à intensidade das expectativas, a frustração das expectativas criadas.

Quanto aos três primeiros pontos, o assunto está mais que resolvido: o próprio Tribunal já declarou que "é legítima a confiança gerada na manutenção do exacto montante da pensão, tal como fixado por ocasião da passagem à reforma" e que no caso dos pensionistas essa confiança merece tutela especial, embora possa ceder "dentro de um limitado condicionalismo, perante o interesse público justificativo da revisibilidade das leis" (vd. Acórdão sobre o OE2013).

Para além de todas as questões constitucionais sobre a justa distribuição dos sacrifícios perante os encargos públicos referentes à sustentabilidade da CGA, é preciso reconhecer que o grau elevadíssimo das expectativas dos pensionistas quanto às suas condições de sobrevivência na velhice, dignas como são de protecção constitucional, eleva, de forma correspondente, o grau de exigência na apreciação da justificação do Governo quanto à necessidade imperiosa de frustrar essas expectativas para prosseguir o interesse público. Não creio que essa prova possa ser feita por um Governo que aprova primeiro o corte das pensões e adia para mais tarde o guião para uma verdadeira reforma do Estado.

 

Artigo publicado no Diário Económico