A cláusula de salvaguarda do IMI já não é o que era e as consequências aí estão: às caixas do correio de muitas famílias começaram a chegar milhares de notificações assustadoras para pagar um IMI destravado. Tudo com a benção do "partido dos contribuintes" e o consolador carimbo do "visto familiar".

Ainda sobrecarregadas com o fardo do "enorme aumento de impostos", filho da loucura de uma política de austeridade "além da troika", as famílias, sobretudo as da classe média, estão a ser alvo de uma nova perseguição fiscal, agora sobre o seu património imobiliário, em muitos casos adquirido num contexto de bloqueio do mercado de arrendamento e de facilidade no acesso ao crédito à habitação. 
Eliminada que foi a chamada "cláusula de salvaguarda geral" do IMI (que limitava os aumentos anuais do imposto, para os imóveis recentemente objecto de reavaliação, a 75 euros ou a 1/3 da diferença entre o valor anterior e o novo), centenas de milhares de contribuintes estão a ser notificados pelo fisco de aumentos verdadeiramente brutais no imposto a pagar. As estimativas apontam para uma subida média da ordem dos 40%, havendo casos, e não serão poucos, em que o aumento pode atingir os 500% ou mesmo mais. A situação só não é pior porque muitos municípios, incluindo o de Lisboa, optaram por aplicar a taxa mínima prevista na lei.
Sendo absolutamente absurda em si mesma, dada a situação económica e social do País e das famílias, esta violência fiscal torna-se ainda mais chocante porque revela as profundas iniquidades do sistema de avaliação e tributação do património introduzido em 2003 e aplicado na operação de reavaliação de cerca de 5 milhões de imóveis, empreendida nos últimos anos. De facto, confrontados com os valores do imposto a pagar, muitos contribuintes dão-se agora conta de que foi atribuído ao seu imóvel um valor patrimonial tributário, sobre o qual incidem as taxas do IMI, que é não apenas bastante superior ao valor anterior, ou ao dos vizinhos, mas por vezes até muito superior ao próprio valor actual que o imóvel tem no mercado. Dito de outra forma: estão a pagar por um património que não têm. A combinação de valores patrimoniais empolados e taxas de imposto exageradas resulta numa mistura iníqua e absolutamente explosiva, que só a manutenção de uma cláusula de salvaguarda poderia travar.
Para o Governo, é claro, nada disto impressiona. Alertado pela oposição, por comentadores e por diversas organizações da sociedade civil para as consequências potencialmente devastadoras desta situação, tudo ignorou e tudo rejeitou, incluindo as propostas concretas do Partido Socialista de prorrogação da cláusula de salvaguarda e de suspensão das penhoras das casas de morada de família. Nenhum argumento económico ou social foi acolhido. E por uma única razão: é dinheiro em caixa. As receitas do IMI, que se ficavam pelos 576 milhões de euros em 2004 (mais 180 milhões da contribuição autárquica), dispararam para 1482 milhões de euros em 2014 e, segundo as contas por baixo do próprio Governo, deverão crescer este ano pelo menos mais 10%, atingindo os 1623 milhões de euros!
A coligação entre o partido que se dizia "dos contribuintes" e o partido que se anunciava "contra" o aumento dos impostos deu nisto: a maior violência fiscal de que há memória no Portugal democrático. Que esta violência absurda contra as famílias aconteça sob a chancela de um pretenso "visto familiar", tem pelo menos uma vantagem: torna evidente qual deve ser a medida prioritária do próximo programa Simplex. Sempre é menos um carimbo.

 

Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 20 de março e na sua edição online.