Imagino a perturbação que deve andar no espírito dos membros do Governo. Antes das eleições, recorde-se, um deles - hoje secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro - chegou a garantir que bastaria os mercados tomarem consciência de que tinha havido uma mudança de Governo em Portugal para o ‘rating’ da República subir automaticamente!

Sabemos todos de onde veio essa extraordinária ilusão: da ideia, muito conveniente para efeitos eleitorais, de que a crise internacional era apenas uma desculpa socialista e de que o verdadeiro mal do País, talvez mesmo da Europa e do Mundo, era o Governo de Sócrates. A realidade, porém, insiste no desmentido. Todos os dias. E vai-se encarregando de provar que a verdade sobre a crise que enfrentamos é outra, muito mais complexa e desafiante.

O facto é este: cinco meses depois da mudança de Governo e anunciadas que foram as medidas adicionais de austeridade "para além da troika", o ‘rating' da República, em vez de subir, continua a descer. Depois da Moodys, em Julho, esta semana duas agências - a norte-americana Fitch e a chinesa Dagong - baixaram ainda mais o ‘rating' de Portugal, para BB+, com ‘outlook' negativo, isto é, com tendência para piorar. E ambas convergiram numa justificação: as perspectivas de agravamento da recessão em Portugal.

Nesse ponto, o ministro das Finanças não podia estar mais de acordo: esta semana cometeu a proeza inédita de apresentar a sua quarta (!) previsão económica para 2012 em apenas cinco meses - e sempre com revisões em baixa: em Julho, previa para 2012 uma recessão de -1,7% do PIB: em Agosto, -1,8%; em Outubro, -2,8% e agora, em Novembro, de novo em baixa para -3%. Raro é o mês em que o ministro das Finanças não revê as suas previsões e longe vai o tempo em que isso era sinal de incompetência!

Como se isso não bastasse, o insuspeito Financial Times publicou, também esta semana, o seu tradicional ‘ranking' dos ministros das Finanças e atribuiu a Vítor Gaspar um decepcionante penúltimo lugar em credibilidade - um lugar que a doutrina oficial julgava reservado, por definição, a ministros das Finanças socialistas.

O primeiro-ministro, tudo indica, continua a não ver em tudo isto mais do que sucessivos "murros no estômago". Do que se trata, porém, é de golpes que atingem, isso sim, o tronco da narrativa da crise que o actual Primeiro-Ministro perfilhou. À luz dessa narrativa distorcida, simplista e panfletária, a descida do ‘rating' de Portugal parecerá ao primeiro-ministro destituída de lógica: afinal, é ele e não Sócrates quem está a frente do Governo; nas Finanças está um liberal importado do BCE; as políticas de austeridade vão além do que a própria "troika" sugeriu e até o empobrecimento foi perfilhado como desígnio governativo. Mas onde verdadeiramente não há lógica é na "grelha de leitura" da crise que o primeiro-ministro teima em manter, para não pôr em causa a narrativa que lhe serviu para ganhar votos em Portugal - e que, aliás, é semelhante à que a chanceler Merkel mantém para tentar não perder votos na Alemanha.

E aí o temos: em Portugal, insistindo numa austeridade que ultrapassa em brutalidade e injustiça as exigências de qualquer "troika"; na Europa, recusando, mesmo contra o Presidente da República e a Comissão Europeia, uma resposta efectiva e solidária da zona euro à crise das dívidas soberanas, preferindo fazer coro com a Chanceler Merkel na defesa da prioridade à disciplina orçamental dos países do Sul.

Mas esta semana, quando a Alemanha falhou, pela primeira vez, uma emissão de dívida pública nos mercados financeiros, não consta que a chanceler Merkel se tenha queixado de ter sofrido um "murro no estômago". É mais provável que tenha finalmente compreendido que a realidade lhe estava a dizer alguma coisa. Se assim for, o primeiro-ministro que tome cuidado: em breve pode não ter com quem fazer coro. E ficará a falar sozinho.

 

Artigo publicado no Diário Económico