Nunca tinha acontecido, mas aconteceu agora: uma entidade pública dependente do Governo teve a extraordinária ousadia de contratar um membro do próprio Governo para exercer uma actividade profissional imediatamente a seguir a deixar o cargo! A inovação, de tão exótica, impressiona.

A tal ponto que - valha-nos Deus! - nem quero pensar o que seria se uma coisa destas tivesse acontecido com um governo socialista: sem dúvida, o País estaria hoje mergulhado numa onda de comoção nacional lamentando a quebra de mais uma tão nobre “tradição democrática portuguesa”. Felizmente, não é o caso e podem por isso os moralistas oficiais do regime, sempre tão apegados às tradições, assobiar para o lado e resignar-se à incontornável fatalidade histórica de que a tradição já não é o que era.

Em causa, obviamente, está a recente contratação do dr. Sérgio Monteiro para liderar o processo de venda do Novo Banco. 

Não pelas qualidades pessoais ou profissionais do interessado, que não se trata de discutir aqui, mas sim pelas circunstâncias absolutamente anormais do caso. 

A contratação de Sérgio Monteiro para as funções de Project Management Officer do projecto de venda do Novo Banco foi tornada pública por comunicado do Banco de Portugal de 29 de Outubro. A data é importante: nessa altura, o dr. Sérgio Monteiro estava ainda no exercício de funções como membro do Governo, enquanto secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações. Perguntar-se-á, ainda assim, se não será legítimo que o Banco de Portugal, com a autonomia de que goza na gestão dos seus recursos humanos, possa promover negociações com um membro do Governo tendo em vista a sua contratação futura como profissional, desde que esse contrato só produza efeitos terminado o exercício das funções governativas? Tivesse a contratação sido realmente efectuada pelo Banco de Portugal e o caso, embora discutível, poderia ser, apesar de tudo, defensável. Mas a verdade é que o Banco de Portugal não contratou ninguém: limitou-se a emitir um comunicado e a servir, mais uma vez, de biombo do Governo.

As aparências têm destas coisas: por vezes iludem. Sendo a contratação anunciada pelo Banco de Portugal, em comunicado seu, publicado no respectivo sítio oficial, a imagem que inevitavelmente passa, e sem dúvida se quis passar, é a de que se tratou de uma contratação feita pelo próprio Banco de Portugal. E funcionou: foi exactamente isso que acabou escrito, preto no branco, na maior parte dos jornais. Contudo, uma leitura um pouco mais atenta do segundo parágrafo do comunicado do Banco de Portugal revela, sem margem para dúvidas, que afinal a contratação do então secretário de Estado foi efectuada não pelo Banco de Portugal, que apenas a divulgou, mas sim pelo Fundo de Resolução - o que faz toda a diferença. De facto, o Banco de Portugal e o Fundo de Resolução não são a mesma coisa. O Fundo de Resolução é uma entidade pública, detida pelo Estado, cujos administradores são maioritariamente nomeados pelo Governo ou com a sua participação. Sendo assim, não há volta a dar: que uma entidade pública, sob tutela governamental, dirigida por administradores maioritariamente nomeados pelo Governo, tenha contratado os serviços profissonais de um membro do Governo em funções, é, obviamente, ultrapassar os mais elementares limites da decência. Que o tenhamos de saber pelo site do vizinho, é ainda mais feio.

Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 6 de novembro e na sua edição online.