No seu discurso no dia 10 de Junho o Presidente da República disse “discordar daqueles que entendem que a magistratura presidencial deve ser uma magistratura negativa e conflitual” e que vêm o Presidente como “um actor político que participa e se envolve no jogo entre maiorias e oposições”.

Mas vai nisso um equívoco deliberado: obviamente, ninguém defendeu tal coisa.

O que os portugueses desejam é um Presidente imparcial, que se mantenha acima dos partidos e não distinga os governos pela sua cor política - porque só assim poderá cumprir a sua função de "árbitro", promotor de consensos e referência de unidade nacional. E esperam um Presidente coerente, que não use dois pesos e duas medidas e, sobretudo, que não doseie o seu grau de preocupação com os "limites dos sacrifícios pedidos ao comum dos cidadãos" à medida das conveniências políticas do momento.

Se o actual Presidente atingiu níveis de impopularidade inéditos na democracia portuguesa não foi por se recusar a uma atitude "conflitual" mas por a ter tido em relação ao governo anterior e a manter em relação às oposições de agora, pondo-se ao lado do Governo; não foi por ter recusado envolver-se "no jogo entre maiorias e oposições" mas por se ter envolvido intensamente nesse jogo ao instigar uma crise política num momento crítico para os interesses nacionais e ao assumir o alto patrocínio da solução governativa da direita, apesar destes dois anos de desastre.

Os portugueses apreenderam bem a natureza da função presidencial. Ao contrário do que parece supor o Presidente, quando as sondagens traduzem uma avaliação negativa do desempenho presidencial não é por o Presidente se recusar a entrar no jogo político e a marcar golo numa das balizas, é porque os portugueses estão a reagir como reage o público nos estádios de futebol quando vê o árbitro favorecer uma das equipas e ter influência decisiva no resultado.

Vejamos um exemplo eloquente. Como todos se recordam, um dos pontos que ficou a marcar negativamente o discurso de posse do actual Presidente para este segundo mandato foi o surpreendente "apagão" da crise internacional. De facto, o Presidente foi capaz de descrever longamente as dificuldades da economia portuguesa, comparando indicadores do início e do fim da última década, sem nunca referir que entre 2008 e 2009 ocorreu a maior crise internacional desde a Grande Depressão dos anos trinta (que interrompeu a recuperação registada entre 2005 e 2007) e sem nunca mencionar a crise das dívidas soberanas que afectou a zona euro desde a crise grega, em 2010. A oposição da altura, é claro, exultou com essa análise grosseiramente distorcida: a culpa, diziam, era do Governo. E viu nesse discurso o incitamento para a crise política que seria anunciada por Passos Coelho 48 horas depois.

Agora que a direita está instalada no Governo, qual é a análise do mesmo Presidente quanto às dificuldades económicas do País, que entretanto se agravaram e muito? Basta ler o discurso que Cavaco Silva fez esta semana no Parlamento Europeu. As palavras foram estas: "Esta crise veio tornar evidente o grau de interdependência entre os Estados-membros da União Europeia, em geral, e da Zona Euro, em particular. É o resultado lógico do nível de integração que alcançámos. Não é hoje possível dissociar a situação num Estado-Membro do contexto geral europeu". E disse mais: "Os países já não são capazes de, isoladamente, resolverem os seus problemas. Mas, por outro lado, a nível europeu ainda não estamos totalmente equipados para o poder fazer eficazmente".
O que é que mudou entretanto para explicar análises tão distintas do mesmo Presidente? Uma coisa é certa: não foi nestes dois anos que se gerou a "interdependência" na zona euro e que deixou de ser possível "dissociar a situação num Estado-Membro do contexto geral europeu". O que sucede é que para alguns só agora se tornou conveniente reconhecer essa evidência.

 

Artigo publicado no Diário Económico