Ouvidos os partidos, todos sabemos que este Governo minoritário da direita toma posse em confronto com a maioria do Parlamento. É, portanto, um Governo de iniciativa presidencial. E é um Governo condenado ao fracasso.

Face ao debate destes últimos dias, vale a pena chamar a atenção para alguns aspectos essenciais do desenho constitucional do nosso sistema de governo. Como o próprio Presidente da República recentemente reconheceu, desde a revisão constitucional de 1982 que a Constituição portuguesa afasta os chamados “governos de iniciativa presidencial”. Mais exactamente, a dupla responsabilidade política do Governo perante o Presidente e a Assembleia da República, prevista na versão original da Constituição de 1976, foi substituída por um modelo de maior pendor parlamentar em que a responsabilidade política do Governo passou a existir exclusivamente perante o Parlamento, sendo complementada por uma mera “responsabilidade institucional” perante o Presidente (a consequência mais visível desta alteração foi a redução da possibilidade do Presidente demitir o Governo aos casos muito excepcionais de “irregular funcionamento das instituições democráticas”). 

Esta nova configuração da responsabilidade política teve profundas implicações no desenho do nosso sistema de governo, a ponto de levar muitos constitucionalistas a concluir que o sistema se converteu de semi-presidencial em semi-parlamentar, tal a dominância acrescida que passou a ter a componente parlamentar. De facto, não se tratou apenas de limitar o poder presidencial de demissão do Governo, libertando o Executivo de qualquer forma de tutela ou dependência da confiança política do Presidente. O que ocorreu foi uma alteração bastante profunda, que atingiu os próprios alicerces do sistema de governo: a fonte de legitimidade do Governo, que até então era dupla, passou a estar concentrada exclusivamente no Parlamento, assembleia representativa da Nação. E escusado será lembrar que a vontade do Parlamento, como é norma em democracia, se expressa pela regra da maioria. 

O que de mais importante resulta da revisão constitucional de 1982 para o desenho do nosso sistema de governo é que, embora o Presidente da República seja eleito por sufrágio universal directo, deixa de haver qualquer nexo entre a legitimidade do Presidente da República e a legitimidade do Governo, a qual se passa a fundar exclusivamente na Assembleia democraticamente eleita - e por isso, aliás, não dispensa o teste da “investidura parlamentar” (através da não rejeição do programa do Governo). A novidade, porém, não reside no facto de agora nenhum Governo poder existir apenas “pendurado” no apoio político do Presidente - em bom rigor, isso já era assim mesmo antes da revisão constitucional de 82, visto que a dupla responsabilidade política sempre implicou a sujeição do Governo também ao crivo parlamentar. A verdadeira novidade é outra: a eliminação da responsabilidade política do Governo perante o Presidente, autonomizando a legitimidade do Governo, tornou ilegítimo o uso - ou abuso - dos poderes presidenciais (incluindo o poder de nomeação do primeiro-ministro) para, em claro desvio de poder, forçar o Parlamento a conviver com um Governo de pura iniciativa presidencial.

É certo, no uso do seu poder de nomeação do primeiro-ministro o Presidente goza de uma relativa margem de interpretação dos resultados eleitorais, embora deva levar em conta a opinião dos partidos com assento parlamentar. Mas num sistema em que o Governo depende exclusivamente da Assembleia, essa margem é tanto mais pequena quanto mais inequívoca for a mensagem que os partidos transmitem ao Presidente. Ora, no caso presente a mensagem dos partidos não podia ter sido mais inequívoca: um governo minoritário da direita não tem qualquer viabilidade parlamentar, ao contrário do que sucede com um Governo formado pelo Partido Socialista. Ainda assim, o Presidente preferiu ignorar a opinião maioritária dos partidos e optou por impor este seu Governo de iniciativa presidencial. Fez mal. Mas fará ainda pior se, contra a Constituição e os superiores interesses nacionais, insistir em abusar dos seus poderes para afrontar o Parlamento, convertendo este Governo de iniciativa presidencial num prolongado e danoso Governo de gestão. Se há coisa que a Constituição não permite é que a Presidência da República seja transformada numa “força de bloqueio” da solução governativa apoiada pela maioria parlamentar que resultou das eleições.

 

Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 30 de outubro e na sua edição online.