O arranque do Sínodo sobre a família confirmou-se como um dos maiores acontecimentos na história da Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II. Até os mais conservadores, que garantiam que nada iria mudar, suspeitam agora que há uma possibilidade real de nada ficar como antes.

O pontificado de Francisco confirma-se como um pontificado surpreendente de abertura e renovação.

Antes ainda das suas conclusões finais, que só serão conhecidas em Outubro do próximo ano (quando os bispos se reunirem de novo em assembleia ordinária), este Sínodo começou por abalar a Igreja pelo procedimento inovador introduzido pelo Papa Francisco: um processo preparatório amplamente discutido e participado por cristãos do mundo inteiro, fomentado por um questionário endereçado pelo próprio Papa (onde não faltavam algumas das questões mais controversas da doutrina católica sobre o casamento e a moral sexual), a que se seguiu um debate sinodal aberto e transparente, com conferências de imprensa diárias, publicação dos documentos de trabalho (incluindo os intercalares e os textos não aprovados) e divulgação do resultado das votações sobre cada um dos pontos em discussão. Nunca se viu nada assim. E por uma razão bastante simples: nunca houve nada assim na vida da Igreja. Como salientou esta semana o Padre Paulo Terroso, no Público, o Papa Francisco "colocou pontos de interrogação onde antes estavam pontos finais". E o debate saiu à rua.

É claro, tanto debate e tanta participação, ainda por cima sobre temas tão controversos da doutrina e da orientação pastoral da Igreja, causaram incómodo em certos sectores, sobretudo naqueles que nunca se resignaram ao espírito do Concílio Vaticano II. A abertura permitida pelo Papa chegou mesmo a merecer censura pública, mais ou menos velada. Por cá, João César das Neves não se conteve e escreveu no Diário de Notícias (22-10-14) que se recusava sequer a debater o que quer que fosse sobre estes temas "superlativos". A visão que César das Neves tem da Igreja é tudo menos nova. Como ele próprio explica: "Na igreja os pastores guiam e as ovelhas seguem (...) Se nos pomos todos a perorar, é o caos". Sucede que, manifestamente, o Papa Francisco não está de acordo com César das Neves (ou vice-versa, o que vai dar ao mesmo). De facto, se há coisa que o Papa fez foi convidar os cristãos do Mundo inteiro a exercerem a nobre arte de "perorar", exercendo a sua corresponsabilidade e participando activamente no debate sobre os caminhos da Igreja diante dos desafios do Mundo de hoje. Francisco mostra assim saber o que alguns não terão ainda entendido: que no espírito do Concílio, o Papa e os bispos, enquanto pastores, só podem ter verdadeiramente a "última" palavra se antes de a proferirem a cada um dos cristãos for reconhecido o direito e o dever de "perorar".

A segunda grande novidade deste Sínodo está bem patente nas votações do relatório final, cujo resultado, apesar das divisões, não deixa de ser inequívoco quanto ao essencial. E o essencial é isto: Francisco, afinal, não está sozinho no seu propósito de fazer evoluir a atitude da Igreja quanto a alguns temas controversos relativos às situações familiares e à moral sexual. Bem pelo contrário. Se é certo que as formulações mais abertas previstas no relatório intercalar foram consideradas excessivas pela maior parte dos "circoli minori" (assim se designavam os grupos de trabalho em que se dividiu o Sínodo) e se também é certo que não foi possível reunir os 2/3 dos votos necessários para garantir a aprovação formal dos três pontos mais "progressistas" que subsistiram no relatório final, quer quanto ao acolhimento dos casais homossexuais quer quanto ao acesso à comunhão pelos divorciados recasados, não é menos verdade que esses pontos controversos acabaram por obter uma significativa maioria de votos favoráveis. A tal ponto que o Papa Francisco fez questão que esses textos se mantivessem no relatório final, embora com a menção, em letras pequeninas, de não terem sido "formalmente aprovados". Esta surpreedente maioria absoluta em favor de uma atitude nova da Igreja é a novidade maior deste Sínodo. E mantém viva a esperança de que não continuem a prevalecer os "circoli minori".

 

Artigo publicado no Diário Económico