Na sua desconjuntada mensagem de ano novo, Cavaco Silva confirmou o que já se sabia: renunciou a ser o Presidente de todos os portugueses.

A mensagem é elucidativa: está tudo a correr bem, como diz o Governo (do seu partido); deixou de haver limites para os sacrifícios que podem ser pedidos aos portugueses; sair do programa de assistência para um novo "programa cautelar" não é mau de todo; e ninguém conte com o Presidente para atrapalhar fazendo cumprir a Constituição. Em suma: não contem com ele para nada.

O alinhamento de facção perfilhado pelo Presidente da República começa na sua persistente distorção das circunstâncias históricas que levaram ao pedido de ajuda externa. Na versão do Presidente, agora repetida, as coisas passaram-se assim: "Importa não esquecer que Portugal chegou, no início de 2011, a uma situação de colapso financeiro iminente, que levou o Governo de então a solicitar o auxílio de emergência das instituições internacionais. Hoje, existe a consciência clara de que não era possível continuar a caminhar rumo àquilo que, na altura devida, classifiquei de ‘situação explosiva'". Para construir esta narrativa manipulada, Cavaco Silva faz desaparecer, de uma só vez, a redução do défice e o controlo da dívida pública conseguidos pelo Governo socialista até 2007-2008 (à custa de medidas e reformas estruturais exigentes); a grande crise internacional de 2008-2009; a consequente crise das dívidas soberanas, que se instalou na zona euro em 2010 e, finalmente, o efeito devastador nos mercados causado pela crise política de Março de 2011, no seguimento da rejeição do PEC IV (que tinha acabado de obter o apoio expresso do BCE e dos nossos parceiros europeus). Será possível, com um mínimo de seriedade, contar a história do nosso pedido de ajuda externa sem sequer mencionar estes factos elementares e decisivos? O Presidente sabe que não mas faz de conta que sim. Prefere a sua versão distorcida, porque mais conveniente para si e para os seus. E é também isso que faz dele um Presidente de conveniência para alguns, não o Presidente de todos os portugueses.

Por outro lado, a súbita indiferença do Presidente para com os "limites para os sacrifícios que podem ser exigidos ao comum dos portugueses", agora que eles são impostos, de forma agravada, pelo Governo da sua própria família política, diz mais do que mil palavras sobre os dois pesos e duas medidas que norteiam a gestão político-partidária do Presidente. Mas onde essa duplicidade mais insidiosamente se revela é no ostensivo apagão que se nota no discurso presidencial quanto às várias revisões do Memorando, que o Presidente trata como se nunca tivessem existido, apesar de terem estipulado o dobro (!) da austeridade prevista na versão inicial. Repare-se nas palavras cuidadosamente escolhidas pelo Presidente: "No ano que terminou, o Programa de Assistência Financeira subscrito por Portugal em 2011 com as instituições internacionais continuou a exigir pesados sacrifícios à maioria dos Portugueses". A intenção é clara: imputar ainda ao Memorando negociado pelo anterior Governo os sacrifícios que apenas foram exigidos nas suas posteriores revisões, em parte por força da desastrosa opção do actual Governo por um ‘front-loading' das medidas de austeridade (no quadro de uma austeridade "além da ‘troika'") e em parte decorrentes dos sucessivos fracassos na prossecução das metas, que se acumularam a ponto de minar a credibilidade do próprio Governo, como aliás reconheceu o ministro das Finanças Vítor Gaspar na sua reveladora carta de demissão.

Neste contexto, não é propriamente uma surpresa que o Presidente, tal como fez em 2012, se escuse a pedir a fiscalização, preventiva ou sucessiva, da constitucionalidade do Orçamento para 2014, mesmo quando são mais do que muitas as dúvidas sobre as medidas que atingem os suspeitos do costume: funcionários públicos e pensionistas, em particular titulares de pensões de sobrevivência. A esses, na curiosa ponderação de custo-benefício a que o Presidente sujeita o seu dever de fazer cumprir a Constituição, saiu a fava: cabe-lhes suportar os custos, enquanto ao Governo sorriem os benefícios. É por essas e por outras que a garantia da Constituição não está apenas nas mãos do Presidente.

 

Artigo publicado no Diário Económico