Foi aos gritos de "Reino Unido primeiro" que um tresloucado defensor do "Brexit" esfaqueou e alvejou mortalmente a deputada do Labour Jo Cox, que defendia a permanência do Reino Unido na União Europeia. O horror deste crime impressiona e não pode deixar de nos colocar, e de modo especial aos britânicos, uma séria interpelação.

Evidentemente, não seria justo apresentar este brutal homicídio como representativo, ou sequer como consequência, do tom da campanha em favor do "Brexit", mesmo que doses insuportáveis de falsidades e demagogia tenham retirado ao debate a elevação e a racionalidade que deviam acompanhar uma decisão tão importante para o futuro do Reino Unido e da construção europeia. Este crime, filho direto da loucura e do ódio, merecerá idêntica repulsa de ambos os lados da barricada. Oxalá receba também a única resposta que se impõe: o reforço da cultura democrática de respeito pelos adversários políticos.

Todavia, é preciso reconhecer que neste crime não há apenas loucura e ódio - há nele, também, o esboço inequívoco de um argumento panfletário, de tipo nacionalista: "Reino Unido primeiro", gritou o assassino, fazendo lembrar o célebre "Deutschland über ales". É certo, podíamos simplesmente ignorar o argumento, pela boa razão de que não se discutem argumentos com assassinos. Podíamos, também, contornar o assunto, decretando apenas que os fins não justificam estes meios. Porém, talvez seja mais avisado não ignorar o problema. E o problema é este: cresce por essa Europa fora um muito preocupante apelo nacionalista, que se alimenta de egoísmo e de medo e se mostra capaz de mobilizar sentimentos populares - e populistas - mais do que a razão. Com a sua pulsão isolacionista e as suas perigosas ilusões protecionistas, o nacionalismo envolve um poderoso potencial desagregador, que é em si mesmo uma ameaça para o projeto europeu.

O caso é sério e mais sério devia ser para uma Europa com memória. Ainda no século passado, por mais do que uma vez o nacionalismo fez este continente mergulhar nas trevas do crime e da guerra. Foi, aliás, contra os egoísmos nacionais que se edificou o projeto europeu. E com ele se reordenaram valores e prioridades: primeiro, bem acima dos interesses nacionais, colocou-se a causa da paz, dos direitos humanos, da procura comum de prosperidade. Agora que o nacionalismo volta a inspirar um crime tão horrendo, é à pergunta fundamental que os britânicos estão devolvidos: afinal, o que é que está primeiro? Se, contra as lições da história, responderem "Reino Unido primeiro", darão a resposta errada.

 

Artigo publicado no Jornal de Notícias