Esta semana, em entrevista ao Jornal de Negócios, o primeiro-ministro inventou uma desculpa nova, tão falsa como as anteriores: o Programa de Assistência Financeira estava “bem desenhado” mas foi “mal calibrado”.
Tudo – é claro! – por culpa do malvado governo socialista que teria levado à fixação de metas demasiado exigentes com base em estimativas irrealistas do défice para 2010 e 2011.
Sucede que a versão de Passos Coelho é objectivamente falsa. Quando foi fechado o Programa de Assistência Financeira, a 17 de Maio de 2011, o INE já tinha divulgado (a 31 de Março) e revisto (a 23 de Abril) os dados sobre o défice de 2010. Portanto, ao contrário do que diz o primeiro-ministro, o défice (de 2010) que serviu de base ao Memorando não assentou em nenhuma estimativa, nem boa nem má, do Governo anterior mas sim no valor oficial do défice já apurado pelas autoridades estatísticas, que era então de 9,1% (sendo que o INE esclareceu que o défice teria sido de 6,8% caso não tivessem sido introduzidas alterações ao perímetro orçamental em resultado de orientações e clarificações metodológicas emitidas pelo Eurostat entre Janeiro e Abril de 2011, já depois de encerrado o ano orçamental).
Desde então, só por uma vez, em Setembro de 2011, é que o INE teve de corrigir o valor do défice de 2010, numa revisão em alta de 9,1 para 9,8%. E fê-lo por razões que é preciso recordar agora ao sr. primeiro-ministro: “Estas revisões”, explicou o INE, “reflectem essencialmente as alterações decorrentes dos factos apurados sobre despesas e dívidas da Administração Regional da Madeira” (cfr. 2ª notificação PDE de 2011, 30-9-11). Em suma, não só é falso que o Memorando tenha sido induzido em erro por uma qualquer estimativa do governo anterior sobre o défice de 2010, como o único erro significativo no valor do défice desse ano, apurado pelo INE, se ficou a dever à fraude estatística cometida pelo próprio PSD na Madeira, através do seu governo regional. Quanto a 2010, estamos conversados: a tese de Passos Coelho é uma aldrabice pegada.
Quanto a 2011, o problema é de outra natureza. O que se fixou para 2011, aliás com o acordo de todos os partidos signatários do Memorando, não foi uma “estimativa” mas sim uma “meta” para o défice (5,9%). E essa meta foi de tal modo considerada generosa que o dr. Eduardo Catroga se apressou a declarar que a negociação tinha sido “influenciada pelo PSD” e a explicar até que “quem apresentou à troika a estratégia de consolidação fiscal fomos nós” (Público, 11-5-2011). Depois das eleições, é certo, Passos Coelho e Vítor Gaspar apressaram-se a ensaiar a famosa rábula do “desvio colossal”, numa tentativa pera legitimar as suas medidas adicionais de austeridade com uma pretensa má execução orçamental dos primeiros meses do ano, da responsabilidade do governo anterior. Mas essa já não pega: fechadas que estão as contas do ano de 2011, sabe-se que, fora as receitas extraordinárias, a execução orçamental do 2º semestre foi pior do que a do 1º. E sabe-se também que, para cumprir a meta do défice com recurso a receitas extraordinárias, como acabou por fazer com a transferência dos fundos de pensões da banca, o Governo podia ter poupado à economia o imposto que levou 50% do subsídio de Natal de 2011.
A verdade é que o “erro de calibragem” da política orçamental – se é que podemos falar assim – esteve muito mais na execução do Memorando pelo Governo do que na configuração inicial do Programa de Assistência Financeira. Foi essa desastrada execução, agravada e consolidada nas sucessivas revisões do Memorando inicial, que destruiu todos os equilíbrios, já de si precários, entre consolidação das contas públicas e crescimento da economia, deixando as metas sempre longe demais. E foi a estratégia de empobrecimento, que sempre norteou a execução do Memorando, que levou à aplicação do dobro (!) da austeridade inicialmente prevista e à recusa de qualquer renegociação das metas e do tempo do ajustamento (a não ser a posteriori, para adequar as metas à medida dos falhanços).
Esta semana, a directora-geral do FMI, Christine Lagarde, reconheceu o erro que Passos Coelho insiste em negar: foi “demasiada consolidação orçamental, demasiado rápido”. E explicou porquê: tendo-se enganado no cálculo do famoso “multiplicador”, o FMI acreditava numa austeridade menos danosa para a economia. E tirou a conclusão: teria sido melhor “o reexame do espaço de tempo em que os programas foram aplicados”. Conclusão já temos. Só falta o moral da história.
Artigo publicado no Diário Económico