Depois do choque fiscal, morto e enterrado pelo enorme aumento de impostos, a direita decidiu agora ir a votos com uma estreia absoluta: a charada fiscal.
Parece um programa eleitoral para especialistas de Sudoku.
A primeira originalidade da proposta do Governo está bem à vista: o Orçamento para 2015 não é só para 2015. Na verdade, o engenhoso esquema elaborado ao fim de horas de maturação no Conselho de Ministros assenta neste princípio bastante simples: “primeiro pagas, depois logo se vê”. Certo é que em 2015 os portugueses voltarão a pagar, por inteiro, o (enorme) IRS e só depois, em 2016, se verá se têm direito a recuperar alguma coisa a título de crédito fiscal, numa criativa modalidade de “reembolso de despesas”, agora tão em voga. Com três particularidades, todas dignas de nota: primeiro, o reembolso fiscal previsto para 2016 está tudo menos garantido, ficando dependente de resultados mais do que incertos; segundo, só haverá lugar a crédito fiscal se as receitas do IRS e do IVA forem consideravelmente superiores ao esperado (mas não se a margem orçamental resultar de outros impostos ou se vier da redução da despesa, o que mostra bem como já nem o Governo acredita no seu velho compromisso de cortar nas “gorduras” do Estado); e terceiro, ‘last but not the least’, em 2016 o Governo já será outro. Quer dizer: será o Governo seguinte a ter de suportar orçamentalmente os custos das promessas eleitorais agora feitas pela direita.
Resolvido o enigma da charada fiscal, a verdade fundamental deste Orçamento é a que sempre pontuou estes últimos três anos de governação: austeridade. Salvo o benefício que os pensionistas poderão tirar das decisões do Tribunal Constitucional e uma ou outra medida pontual desenhada para colorir o discurso de propaganda do Governo, o Orçamento para 2015 mantém, no essencial, o rumo da política de austeridade, embora com a notória preocupação de conter, em vésperas de eleições, o ritmo de agravamento do esforço de consolidação orçamental. Ainda assim, por incrível que pareça, o Governo conseguiu agravar ainda mais neste Orçamento o pacote de medidas de austeridade, quer por via do aumento de vários impostos, designadamente impostos sobre o consumo (a ponto de elevar a carga fiscal para um recorde histórico de 37%), quer por via de ainda mais cortes nas prestações sociais e nos serviços públicos, com destaque para a educação. A tudo isto há ainda que juntar um factor da maior importância: o impacto brutal que vai ter o fim da cláusula de salvaguarda que limitava, para a maior parte das situações, os aumentos do IMI, implicando assim, para muitas famílias, um encargo adicional verdadeiramente insuportável, com consequências imprevisíveis do ponto de vista económico e social.
Com o falhanço na consolidação da recuperação económica e os sinais negativos que se acumulam no quadro europeu, do que Portugal precisava era de um Orçamento bem diferente: um Orçamento que deixasse de estrangular a economia e que enviasse sinais claros aos agentes económicos, em vez de os remeter para uma charada fiscal de que só têm razões para desconfiar. Precisávamos, para isso, de um Governo que soubesse colocar-se do lado daqueles governos que hoje, na Europa, e em especial na zona euro, lutam por uma mudança na política orçamental, correspondendo ao apelo de Mario Draghi e à exigência crescente dos cidadãos europeus. Precisávamos, em suma, de outro Governo. Felizmente, já estivemos mais longe. A melhor coisa que há para dizer do último orçamento deste Governo é que é o último.
Texto de opinião publicado na edição do Diário Económico de 17 de outubro de 2014.