A arrogância que inspira a ingerência da Alemanha e da Comissão Europeia nas eleições da Grécia é uma ofensa intolerável à soberania do povo grego e revela um desprezo olímpico pela democracia de Atenas. Esta provocação é filha de uma visão anti-democrática da construção europeia. E é um erro pensar que ficará sem resposta.
Os eleitores gregos vão às urnas, daqui a duas semanas, num ambiente de alta tensão, sob vigilância apertada dos mercados e das instituições financeiras internacionais, sujeitos a enormes pressões e ameaças externas e com os seus problemas sociais e económicos agravados por seis anos de política de austeridade. É nesse quadro complexo que os gregos vão escolher o seu futuro. E é nesse quadro que vão ter de decidir também como responder às provocações.
Fique claro: é perfeitamente normal, sobretudo em vésperas de eleições, que partidos e dirigentes políticos estrangeiros possam expressar a sua solidariedade para com os candidatos da sua família política. O que não é normal, nem tolerável, é que um governo estrangeiro tome partido sobre a escolha eleitoral que cabe aos eleitores de outro país fazer ou que a Comissão Europeia quebre o seu dever de estrita neutralidade político-partidária e indique os seus candidatos “preferidos” em determinada eleição nacional. Todavia, foi precisamente isso que aconteceu. O Governo alemão, através do sempre bem informado Der Spiegel, resolveu ameaçar os gregos com o fogo do inferno em caso de vitória do Syriza e fez saber, preto no branco, de que lado está nestas eleições (embora depois se tenha escusado a confirmar formalmente o seu apoio ao partido do primeiro-ministro Antonis Samaras). Já o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, foi explícito na manifestação das suas preferências: “não gostaria que forças extremistas chegassem ao poder” na Grécia e preferia “rever rostos familiares em Janeiro”. Esta “preferência” da Comissão Europeia já tinha sido expressa pelo Comissário Pierre Moscovici a 29 de Dezembro, no próprio dia em que foram anunciadas as eleições na Grécia. Sem perder tempo, o Comissário dirigiu-se aos eleitores gregos e pediu-lhes que expressassem um “largo apoio” às reformas em curso. E quando mais tarde negou que estivesse a fazer um apelo ao voto, não resistiu a deixar um derradeiro “esclarecimento” aos eleitores gregos: se o líder do Syriza, Alex Tsipras, se tornar primeiro-ministro, explicou Moscovici, “discutiremos com ele com base nas nossas propostas” (que é como quem diz: “votem os eleitores como votarem, não vamos sequer discutir com base nas propostas do Syriza”).
Que propostas terríficas são essas que motivam tanto activismo dos responsáveis europeus e tamanha preocupação nos mercados? Que heresia é essa que abala de tal modo a fé dominante que não pode sequer ser discutida mesmo que seja democraticamente votada? Não se trata, já se sabe, da saída da Grécia do Euro, que não consta do chamado Programa de Salónica, apresentado pelo Syriza em Setembro passado (e não tem que ser uma consequência necessária do seu programa económico). Em boa verdade, as escolhas políticas que os gregos “ameaçam” fazer daqui a quinze dias são duas: rejeição da política de austeridade e proposta de uma negociação europeia para a reestruturação da dívida pública.
Perante isto, o que a senhora Merkel e o senhor Juncker estão a dizer aos eleitores – agora da Grécia, amanhã doutro país qualquer – é que essas são “escolhas proibidas”: a alteração da política de austeridade não será sequer discutida a nível europeu mesmo que seja votada a nível nacional. Dito de outra forma, a política de austeridade não depende do voto.
Não é a primeira vez que o pensamento único da ortodoxia económica dominante se pretende a salvo das escolhas democráticas. E não surpreende, para quem o conheça, que encontre refúgio no défice democrático da construção europeia ou até que se alimente das restrições financeiras para desprezar, com toda a sua arrogância, a margem de escolha das democracias nacionais. Acontece, porém, que a realidade é o que é: nesta Europa martirizada pelo desemprego e mergulhada na estagnação e na deflação, os resultados são demasiado maus para que a política de austeridade possa deixar de estar no centro do debate e das escolhas democráticas, seja na Grécia ou seja lá onde for. O discurso das “escolhas proibidas”, venha ele de Berlim ou de Bruxelas, é, pois, um duplo erro: sendo a negação da democracia, é também a negação da realidade. E se a democracia não enfrentar a realidade, será a realidade a enfrentar a democracia.
Artigo publicado no Diário Económico