O Papa Francisco completa esta semana o primeiro ano de um pontificado surpreendente. À força de gestos, medidas cirúrgicas e exortações, já logrou uma proeza notável: fez renascer a esperança na renovação da Igreja Católica.
As correntes conservadoras, dentro e fora da Igreja, tentam disfarçar o incómodo. Dizem que é tudo uma questão de estilo. Que é preciso perceber – ou seja, relativizar – a linguagem colorida da América Latina. Que é apenas um cristão simples, de sabedoria jesuíta e espírito franciscano. Que tudo se resume à sua maneira de ser e ao “ajustamento”, aliás necessário, na gestão do Vaticano. Fazem notar, sobretudo, que nada mudou. E garantem que nada vai mudar. Oxalá Francisco os decepcione.
Vasco Pulido Valente, esse, não desiludiu: o Papa “não traz nada de novo ao catolicismo”, escreveu ele. “O que ele trouxe de novo está mais no espectáculo do que na substância” (Público, 2-2-14). Também José Manuel Fernandes (JMF), depois de ouvir o Papa dizer “nunca fui de direita” e proclamar que “esta economia mata”, achou melhor advertir: “Não se iludam, o Papa Francisco não é de esquerda: é apenas católico” (Público, 17-1-14). E recordou, como se fosse uma novidade, que a opção pelos pobres está desde sempre “no coração do cristianismo”, tal como o “primado da pessoa humana sobre a economia”, que o Papa assume na Exortação Evangelii Gaudium (EG), consta da doutrina social da Igreja desde a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891. Concedendo que o Papa regista os limites da economia de mercado “em termos que um economista liberal não faria”, JMF esforça-se por inserir a Exortação do Papa na “evolução da doutrina da Igreja”, um processo que “foi muito bem descrito por Michael Novak no seu A Ética Católica e o Espírito do Capitalismo e esta exortação apostólica não representa qualquer inversão de percurso”.
A referência a Michael Novak, um pensador católico norte-americano, antigo conselheiro de Ronald Reagan e defensor da conciliação entre catolicismo e capitalismo, é muito oportuna. O único problema é que Novak não está de acordo. Em entrevista ao jornal La Stampa (21-9-13), Michael Novak perdeu a paciência com este Papa dos pobres que teve o atrevimento de denunciar a “obsessão” (sic) com que muitos na Igreja tratam as questões da moral sexual: “Francisco não se dá conta dos danos que faz”, comentou Novak. Ele quer apenas mudar “o tom” da Igreja mas “o efeito corre o risco de ser prejudicial”. E o pior, antevê Novak, ainda está para vir: “A esquerda vai-se sentir encorajada a pressionar por mudanças da doutrina”.
Ao clamor dos críticos respondeu o Cardeal de Munique, Reinhard Marx, conselheiro do Papa, no seu notável artigo “Para lá do Capitalismo”, publicado no L’Ossveratore Romano (10-2-14). Aí recordou que o debate sobre o capitalismo é imposto pela “crise catastrófica” provocada pelo capitalismo financeiro que se desenvolveu, a partir dos anos 90, ao abrigo de uma desregulação apoiada pelo “mainstream” dos economistas, para quem o “conceito de economia social de mercado já era uma aberração socialista”. Agora que “velhos demónios ressurgem nas suas aberrações em direcção ao capitalismo primitivo”, escreveu o Cardeal, é preciso lembrar que a ideia de que os mercados geram o bem através da concorrência é apenas uma afirmação “ideológica”. Pelo contrário, “o capitalismo não deve ser o modelo da sociedade porque não leva em consideração o destino individual dos fracos e dos pobres”.
É verdade que Francisco não introduziu nenhuma ruptura nos princípios da doutrina social da Igreja. A sua diferença está em não se ficar pelos princípios e fazer uma acentuação nova na questão das desigualdades que desautoriza frontalmente a ideologia neoliberal. Como ele próprio explicou, “não podemos evitar de ser concretos (…) para que os grandes princípios sociais não se fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar consequências práticas” (EG, nº 182).
E foi lapidar: “A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar (…). Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG, nº 202). Em pleno debate sobre a “austeridade expansionista”, o Papa notou que “alguns defendem ainda as teorias da recaída favorável que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social”. A estes, o Papa deu uma resposta dura: “Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante” (EG, nº 54). E para que nenhum neoliberal se pudesse fazer desentendido, acrescentou: “Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo (…) requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos (…) que supere o mero assistencialismo” (EG, nº 204). Perante isto, não ver neste pronunciamento senão a mera reafirmação de velhos princípios gerais é mais do que cegueira: é uma forma como outra qualquer de minimizar e combater a mensagem do Papa.
É noutro terreno, todavia, que se joga o desafio maior deste pontificado: as questões da moral sexual e da família, onde se acumulam bloqueios absurdos na comunicação entre a Igreja e o Mundo. Também aqui Francisco não perdeu tempo. Com lucidez, convocou para Roma um Sínodo sobre a família. E fez o que nunca tinha sido feito: mandou ouvir o povo. “Ainda não mudou nada”, lembrarão os conservadores. E têm razão. A única certeza, por agora, é que o Papa colocou questões e mandou ouvir o povo. Mas qualquer mudança tinha de começar assim.
Artigo publicado no Diário Económico