24.04.23

A direita e o financiamento de muros anti-imigração

Os muros anti-imigração, na lógica securitária de uma “Europa-fortaleza”, ofendem os direitos humanos dos imigrantes e dos refugiados.

 “É triste ouvir propor, como solução, o uso de fundos comuns para construir muros, para levantar barreiras de arame farpado”
Papa Francisco, Grécia, 2021

Abateu-se um estranho silêncio sobre um dos factos políticos mais importantes da política europeia nos últimos tempos: o PPE, partido do centro-direita, a que pertencem PSD e CDS, votou no Parlamento Europeu, em convergência com a extrema-direita, a favor da utilização de fundos europeus para financiar a construção de muros anti-imigração. Inspirando-se na famigerada bandeira de Trump, esta posição confirma a captura do centro-direita pela agenda populista e a perigosa deriva de aproximação do PPE à extrema-direita. Estando os valores europeus sob ataque frontal do populismo nacionalista e xenófobo, a capitulação do centro-direita não é coisa de somenos.

Comecemos por explicar o que aconteceu. Na semana passada, o Parlamento Europeu foi chamado a votar o relatório de orientações para o orçamento de 2024 cujo parágrafo 48 continha um pronunciamento claro contra a utilização de fundos europeus para financiar muros anti-imigração:

Manifesta viva preocupação com a interpretação dada por certos Estados-membros às conclusões do Conselho Europeu de 9 de fevereiro de 2023 e, em particular, ao seu ponto 23; salienta que a autoridade orçamental da UE se opõe firmemente à utilização de qualquer financiamento da União para a construção de vedações ou muros nas fronteiras externas da União, e espera que a Comissão continue a recusar qualquer tipo de financiamento desse tipo, agora e no futuro.

Separavam-se as águas: quem fosse contra a utilização de fundos europeus para muros anti-imigração apoiaria este parágrafo, quem quisesse defender o financiamento dos muros teria de votar na especialidade contra o texto original ou, em alternativa, teria de o derrogar através de emendas que modificassem ou substituíssem o texto proposto.

Extrema-direita e PPE convergiram na estratégia de apresentar emendas para afastar o texto original. A emenda do grupo dos Conservadores (ECR, em que milita o partido da senhora Meloni) substituía ostensivamente o texto original por outro de sentido contrário, apelando ao financiamento europeu de muros anti-imigração. Esta emenda não foi aprovada, mas obteve o voto favorável da esmagadora maioria dos deputados do PPE (embora não dos eurodeputados do PSD e do CDS). Deste modo, ficou claro o apoio do PPE à utilização de dinheiro dos contribuintes europeus para construir muros anti-imigração, como, aliás, já tinha sido defendido pelo próprio líder do PPE, Manfred Weber, na linha do manifesto eleitoral que o PPE apresentou nas eleições europeias de 2019, onde assumia como primeira prioridade, à frente até do crescimento económico e da criação de emprego, “proteger as fronteiras da Europa contra a imigração ilegal”.

Sendo esta a posição do PPE, não surpreende que a tenha procurado fazer valer através da sua própria emenda. A emenda do PPE, votada favoravelmente pelos eurodeputados do PSD e do CDS, “insta a Comissão a mobilizar imediatamente fundos e meios substanciais da UE para apoiar os Estados-membros no reforço das capacidades e das infraestruturas de proteção das fronteiras, dos meios de vigilância, incluindo a vigilância aérea, e dos equipamentos”.

Mais do que a redação da emenda, relevante aqui é o facto de através dela se emendar e fazer cair o texto original. Simulando diferenças de conteúdo e optando por uma formulação mais próxima das conclusões do Conselho, em que se fala do financiamento de “infraestruturas” em vez do financiamento de “muros”, o PPE obtinha, afinal, o mesmo resultado que a extrema-direita pretendia alcançar: afastar o texto original e assim evitar que o Parlamento se pronunciasse contra a utilização de fundos europeus para financiar muros anti-imigração. Lamentavelmente, foi nesse estratagema que os eurodeputados do PSD e do CDS aceitaram colaborar com o seu voto favorável, fazendo o jogo dos que defendem o financiamento europeu dos muros anti-imigração.

Disfarçando mal o embaraço, o PSD veio dizer que apenas votou a favor de um texto que reproduzia as conclusões do Conselho Europeu, pelo que o PS é que teria de explicar porque é que votou contra uma formulação que António Costa tinha aceitado. É uma tentativa desajeitada de lançar “poeira para os olhos”.

Como o PSD bem sabe, não estava em causa apoiar ou rejeitar as conclusões do Conselho, mas sim desautorizar ou não a interpretação abusiva que alguns estavam a fazer dessas conclusões para legitimar o financiamento europeu dos muros. O facto é que essa clarificação foi afastada pela emenda do PPE, que contou para isso com os votos favoráveis do PSD e do CDS. Quisessem PSD e CDS rejeitar o financiamento europeu dos muros anti-imigração e bastar-lhes-ia ter a coragem política de fazer o óbvio: recusar o apoio a qualquer emenda que afastasse o texto original que dizia isso mesmo. Não foi o que fizeram. Dada a aprovação na especialidade do texto proposto pelo PPE, o Grupo Socialista, fiel aos seus valores, viu-se obrigado a votar contra o relatório, provocando o seu “chumbo” na votação final global.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, recusou terminantemente a utilização de dinheiro europeu para esse fim. A construção de muros não é uma política europeia, pelo que os Estados-membros que optarem por os construir no seu território fá-lo-ão por sua conta.

O que está em causa é da maior importância para os valores europeus. Sob pressão dos fluxos migratórios, proliferam em várias fronteiras da Europa, com Governos de diversas colorações políticas, o mais variado tipo de muros, cercas de arame farpado e outras barreiras físicas. E novos muros se anunciam. Doze Estados-membros escreveram mesmo à Comissão Europeia solicitando a mobilização de fundos europeus para a construção destes muros. O primeiro-ministro António Costa, contudo, deu a chave para a única interpretação legítima das conclusões do Conselho Europeu: “O acordo não passa por financiar a construção de muros.” Na mesma linha, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, recusou terminantemente a utilização de dinheiro europeu para esse fim. A construção de muros não é uma política europeia, pelo que os Estados-membros que optarem por os construir no seu território fá-lo-ão por sua conta.

Os muros anti-imigração, na lógica securitária de uma “Europa-fortaleza”, ofendem os direitos humanos dos imigrantes e dos refugiados. Sobre isso se pronunciou inúmeras vezes o Papa Francisco. Ficou célebre o seu comentário sobre Trump, em 2016, no regresso do México: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que seja, e não na construção de pontes não é cristã (…). Eu diria que esse homem não é cristão se fala assim.” Mais tarde, no regresso de Marrocos, em 2019, foi acutilante: “Os construtores de muros, sejam de lâminas que cortam como facas ou de tijolos, tornar-se-ão prisioneiros dos muros que fazem.” E em janeiro de 2022, diante do corpo diplomático, insistiu: “Não podemos entrincheirar-nos atrás de muros e arames farpados a pretexto de defender a segurança ou um modo de vida.” Todavia, foi na visita à Grécia, em 2021, que o Papa disse o que pensava da utilização de fundos europeus para construir muros anti-imigração: “É triste ouvir propor, como solução, o uso de fundos comuns para construir muros, para levantar barreiras de arame farpado (…). Não é erguendo barreiras que se resolvem os problemas.”

Infelizmente, há muito que a democracia cristã e o personalismo humanista do PPE deixaram de dar ouvidos ao Papa Francisco.

(Artigo publicado no jornal Público de 24/04/2023)