Perante uma nova liderança no Partido Socialista, com maior capacidade de mobilização do país para uma verdadeira alternativa política, a esquerda parlamentar à esquerda do PS insiste no mesmo erro de sempre e parece querer escolher o seu lugar do lado de fora.
O PCP, pela voz do próprio Jerónimo de Sousa, apressou-se a classificar como “farsa” (!) o extraordinário exercício cívico que levou quase duzentos mil portugueses às sedes do Partido Socialista e a outros locais públicos para escolherem, por voto livre e secreto, o seu candidato a primeiro-ministro. Certamente orgulhosos da sua longa história de candidaturas únicas votadas de braço no ar, os comunistas não se mostraram impressionados pela abertura e pelos procedimentos democráticos do PS.
O Bloco, por seu turno, que já vinha somando ao seu declínio eleitoral um processo de acentuada desagregação, entrou em nova convulsão interna e viu o seu próprio líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, escolher esta feliz ocasião para se candidatar à liderança em nome de um argumento verdadeiramente extraordinário: o de que a liderança bicéfala de João Semedo e Catarina Martins revelou uma “excessiva abertura” (!I) a entendimentos com o PS.
Certo é que Francisco Louçã, patrono da liderança bicéfala e eterno inspirador do Bloco, acusou o toque. A tal ponto que esta semana teve de vir a terreiro, num longo mas interessante comentário no Público, para confirmar a ortodoxia bloquista e definir a doutrina oficial, explicando que “a esquerda” (leia-se: o Bloco e o PCP) não só fez muito bem em chumbar o PEC IV em 2011 e derrubar o Governo do PS abrindo o caminho à direita e ao FMI, como deve tornar a fazer o mesmo se no futuro um outro Governo “do centro” (leia-se: do PS) insistir na “continuação da austeridade”. E é o próprio que desfaz todas as dúvidas: “não estamos a falar do passado, estamos a discutir como se deve comportar a esquerda perante um governo de António Costa”.
Os argumentos de Louçã para justificar a posição do Bloco no derrube do Governo socialista são fundamentalmente dois. O primeiro, é uma questão de fé: com o PEC IV “continuaria a pressão financeira e haveria sempre uma posterior intervenção da troika”. Não terá grande interesse especular sobre a realidade virtual e menos ainda discutir a fé de cada um. O que sabemos, de ciência certa, é que o PEC IV tinha o apoio formal do BCE e foi esse apoio do BCE que permitiu a outros países, como a Espanha e a Itália, evitar a intervenção da ‘troika’. Até hoje. E nisto é que não há nenhuma questão de fé: são factos.
O segundo argumento de Louçã merece mais discussão: a esquerda não podia apoiar o PEC IV, diz ele, porque esse programa “não era uma alternativa à austeridade” e não era diferente do programa da ‘troika’ senão em “detalhes menores”. Deixemos de lado o “detalhe menor” que era todo o contexto da discussão do PEC IV (numa omissão muito reveladora, em nenhum momento Louçã situa as escolhas governativas da época no contexto da resposta europeia à crise das dívidas soberanas, como se fosse possível discutir alternativas em abstracto, independentemente da sua viabilidade concreta) e recordemos apenas alguns dos “detalhes”, que Louçã apelida de “menores”, e que fizeram a diferença entre o PEC IV e o programa da ‘troika’ aplicado pela direita: corte do 13º e do 14º mês dos funcionários públicos e dos pensionistas; aumento do IVA da restauração e da energia para a taxa máxima; “enorme” aumento de impostos, incluindo o aumento de 30% no IRS. Estes e muitos outros “detalhes” levaram à execução do dobro da austeridade inicialmente prevista no Memorando e, sem dúvida, a muito mais sacrifícios do que resultaria de um programa moderado como era o PEC IV, destinado a vigorar enquanto a zona euro acertava o passo, como veio a fazer, na resposta à especulação nos mercados financeiros.
A argumentação de Louçã, como seria de adivinhar, leva-o a uma conclusão taxativa: para aprovar as medidas propostas pelo Governo do PS (o anterior e provavelmente o próximo) a esquerda teria de tornar-se “igual à direita”. Não deixa de ser uma conclusão extraordinária. Depois de três anos de governação feroz da direita, frontalmente contra a Constituição e o Estado Social, perante um retrocesso histórico na economia e um brutal agravamento do desemprego, da pobreza e das desigualdades, uma certa esquerda continua a recusar-se a reconhecer a diferença entre o PS e a direita. Mas é aqui que Louçã parece deixar escapar um detalhe que talvez não seja menor: se é para ter quem se limita a repetir esta conversa contra o PS, a esquerda já está servida há muito tempo. Não precisa do Bloco para nada.
Artigo publicado no Diário Económico