A União Europeia chega a 2016 com cinco desafios principais pela frente: a crise dos refugiados, o terrorismo e demais ameaças à paz e à segurança, a reforma da União Económica e Monetária, o referendo no Reino Unido e a recuperação da economia e da convergência. Todos estes desafios, de enorme complexidade e com declinações várias, interpelam muito seriamente os valores fundadores da construção europeia. E em todos e cada um deles se joga o futuro do projecto europeu.
Gostaria de centrar-me aqui no problema da política económica e orçamental, que permanece essencial não obstante a concorrência das outras crises que disputam a atenção do espaço mediático. De facto, sem a superação da prolongada “crise de resultados” da União Europeia, devolvendo aos cidadãos um horizonte de prosperidade e ao projecto europeu a ambição da convergência, será difícil recuperar a confiança perdida nas instituições europeias e travar a escalada dos movimentos eurocépticos nos dois extremos do espectro político.
O Banco Central Europeu primeiro, sob a liderança de Mario Draghi, e a nova Comissão Europeia depois, sob a liderança de Jean-Claude Juncker, deram sinais de ter percebido o problema. A política monetária corrigiu o erro dos primeiros anos de resposta à crise e venceu as resistências do Banco Central alemão para se tornar cada vez mais expansionista – sendo hoje certo que não vai ficar por aqui. A política orçamental, por seu turno, depois de ter começado por ignorar o apelo de Draghi no seu famoso discurso de Jackson Hole, começou finalmente a dar sinais de alguma tolerância, admitindo mesmo explorar as margens de uma certa flexibilidade até aqui sumariamente banida da agenda europeia. O Presidente da Comissão chegou até a emprestar o seu próprio nome a um novo plano de investimento, de 315 mil milhões de euros, anunciado para desbloquear o financiamento de projectos estruturantes necessários ao relançamento da economia europeia.
Todavia, o modo como as instituições europeias geriram a questão da Grécia, a exasperante lentidão no lançamento do Plano Juncker e no processo de conclusão da União Económica e Monetária e, sobretudo, a abordagem austeritária ainda prevalecente na consideração das políticas orçamentais no âmbito do Semestre Europeu, parecem indicar que há em Bruxelas quem ainda não tenha percebido o que está em causa.
Vale a pena notar que, entretanto, do outro lado do Atlântico, a Reserva Federal norte-americana (FED), ao decidir, pela primeira vez desde 2006, aumentar as taxas de juro (que estiveram próximas de zero ao longo dos últimos sete anos), sinalizou o princípio do fim da sua política monetária expansionista, dando assim por encerrado o ciclo de respostas extraordinárias da economia norte-americana face às dramáticas consequências da crise financeira de 2007 e da Grande Recessão internacional de 2008-2009. Perguntarão os europeus: porque é que a FED tomou esta decisão agora? A resposta breve é esta: porque podia.
É certo, os riscos que subsistem na conjuntura económica internacional (abrandamento da China e das economias emergentes, turbulência no mercado do petróleo, bolhas especulativas nos mercados financeiros, instabilidade económica e financeira na zona euro, impacto da crise dos refugiados, do terrorismo e das múltiplas ameaças à paz e à segurança) justificam a controvérsia que se gerou a propósito desta decisão, com alguns a recordarem a lição das medidas precipitadas que se tomaram em 1937 assim que surgiram os primeiros sinais de pretenso final da Grande Depressão e que pouco depois tiveram de ser revertidas. Contudo, é preciso reconhecer que a Presidente da FED, Janet Yellen, tem a seu favor, além da expectativa criada nos mercados, indicadores muito convincentes que atestam a evolução indiscutivelmente positiva da economia americana: crescimento económico sustentado e duradouro (a economia saiu da recessão logo em 2009 e segue a bom ritmo), taxa de desemprego historicamente baixa (na casa dos 5%) e razões para confiar numa inflação próxima de 2% no médio prazo.
Seria conveniente tentar perceber porque é que, sete anos depois da crise do “subprime” ter irrompido precisamente nos Estados Unidos da América, é completamente diferente – e bastante pior – o cenário que se vive na Europa. Os dados não enganam: o crescimento económico é muito mais modesto (no terceiro trimestre de 2015, o PIB da União Europeia cresceu apenas 0,4% face ao trimestre anterior), o desemprego está ainda acima dos 10% (sensivelmente o dobro do que se verifica nos Estados Unidos) e a inflação, apesar dos estímulos da política monetária, continua próxima de 0, ou seja, continua mais próxima do precipício da deflação do que da meta dos 2%.
Perante isto, é tempo de dar finalmente ouvidos ao Presidente do Banco Central Europeu quando recorda aos responsáveis europeus que a política monetária sozinha não será capaz de relançar a economia europeia. Sem dúvida, é reconfortante saber que a Análise Anual do Crescimento para 2016, que a Comissão Europeia recentemente apresentou em jeito de lançamento do ciclo anual de governação económica, adoptou o sugestivo título: “Reforçar a retoma e fomentar a convergência”. Infelizmente, o que vem a seguir ao título é bastante menos prometedor: poucas garantias de execução rápida do Plano Juncker e de conclusão suficiente da União Bancária; nenhuma iniciativa digna de registo a favor da convergência; a mesma confusão de sempre entre reformas estruturais e flexibilidade no mercado de trabalho; política orçamental dita “neutral” mas com pendor ainda dominantemente austeritário e escassos sinais de uma coordenação económica capaz de tirar partido das margens orçamentais onde elas existem e se acumulam, designadamente em países como a Alemanha.
O efeito das medidas expansionistas do BCE, associado a factores igualmente extraordinários como a baixa dos preços do petróleo e os ganhos de competitividade das exportações europeias face à desvalorização do euro, vai permitindo manter uma imagem, em larga medida artificial, de recuperação da economia europeia e de estabilização na área do euro – que, todavia, tarda em fazer-se sentir na vida de muitos cidadãos europeus, sobretudo nas economias da periferia. Alastra, por isso, a desilusão com o projecto europeu – e com ela a impaciência. O permanente adiar de uma inflexão suficientemente expressiva na política económica e orçamental da União é, por tudo isto, um erro perigoso. Como Mario Draghi tem explicado, a única coisa que a política monetária pode fazer é comprar tempo. E o tempo está a esgotar-se.
Artigo publicado no Diário Económico