Ante a oportunidade de um novo compromisso para a Grécia e de um virar de página na fracassada política de austeridade, é muito triste ver o Governo e o Presidente da República colocarem Portugal outra vez do lado errado na Europa. Mas pior ainda é a insuportável arrogância do modo como falam da Grécia.
Coube ao porta-voz do Governo, o ministro da Presidência Marques Guedes, enunciar em primeira mão, e em linguagem colorida, a nova versão portuguesa da famosa doutrina “nós não somos a Grécia”. É assim: se a crise das dívidas soberanas fosse uma fábula, a Grécia seria a “cigarra” e Portugal seria a “formiga”. Infelizmente, nem a história desta crise é fabulosa, nem a narrativa governamental corresponde à realidade. A verdade é que o povo grego suportou, ao longo dos últimos cinco anos, enormes e prolongados sacrifícios que em nada ficaram atrás dos que foram impostos aos portugueses, bem pelo contrário. Isso mesmo, aliás, era abundantemente reconhecido quando o Governo grego era outro e outra era a sua cor política.
Enaltecia-se, então, o “esforço admirável” dos gregos e fazia-se vista grossa aos números insustentáveis do desemprego e da dívida pública para exaltar os esplendorosos “resultados” da austeridade e tirar daí, em vésperas de eleições, a muito conveniente conclusão de que era preciso seguir em frente – sob a liderança, é claro, da direita. Bastou o povo grego, cansado de sacrifícios e de fracassos, votar em força contra a desastrosa política de austeridade para todos os seus esforços anteriores se varrerem da memória dos governantes portugueses. Onde antes reconheciam um povo sacrificado, merecedor de respeito e reconhecimento, passaram de repente a ver irritantes “cigarras” que, como na história infantil, não querem trabalhar e preferem ir em “cantigas” sem cuidar do seu sustento. Onde é que já ouvimos isto? Conhecemos bem esse discurso moralista, pelas piores razões: é em tudo idêntico ao discurso arrogante que a Alemanha e outros países do Centro e do Norte da Europa teimaram em fazer sobre nós próprios, os portugueses, enquanto representantes dessa periférica e alegadamente “preguiçosa” Europa do Sul. A nós chamavam-nos PIIGS; o Governo português, mais ternurento, chama aos gregos “cigarras”. A arrogância, essa, é a mesma. Só muda a bicharada.
Em sintonia com o Governo, para não variar, o Presidente da República, à margem do Congresso Nacional do Milho, foi ainda mais longe e escolheu o seu inimitável tom superior de “mestre-escola” para, olhando de cima para baixo para a Grécia, registar com agrado o muito que o Governo grego “aprendeu” em poucos dias sobre a União Económica e Monetária e manifestar a esperança de que prossiga com essa “aprendizagem”, evoluindo na correcção das suas posições iniciais. Pelo caminho, exactamente quando se discute um novo compromisso de solidariedade com a Grécia, achou por bem advertir que a solidariedade de Portugal com o povo grego já está a custar muitos milhões que estão a ser tirados “dos bolsos dos portugueses” – que é como quem diz: “há limites para os sacrifícios que os gregos podem pedir ao comum dos cidadãos europeus”.
Aparentemente, nem o Governo nem o Presidente da República se dão conta do imenso ridículo que é esse tom de superioridade que escolheram para falar, em nome de Portugal, sobre os problemas da Grécia. Mas que não haja confusões: esse tom não é errado apenas por ser balofo ou pretensioso vindo de quem vem – é também errado porque é absolutamente destrutivo do espírito solidário sem o qual não há futuro para o projecto europeu.
Seja como for, o que está em causa é muito mais do que o tom: é a própria posição política de Portugal quanto a um novo compromisso com a Grécia. Manifestamente, a direita portuguesa receia que um virar de página na política orçamental e nas condições de gestão da dívida pública na zona euro possa ser entendido como o reconhecimento do fracasso da sua aposta na pretensa via única da austeridade. Mais até do que a cegueira ideológica ou a obediência ao directório alemão, é esse cálculo político mesquinho que está a empurrar o Governo e o Presidente da República para uma absurda posição de dureza contra a Grécia, quando é evidente que um acordo com a Grécia seria também vantajoso para Portugal. Assim sendo, e apesar de estar em causa o interesse nacional, não é de prever que tenha sucesso o apelo que diversas personalidades dirigiram em carta aberta ao primeiro-ministro para que Passos Coelho aceite rever a sua posição face à Grécia. O que só deixa uma alternativa: apelar aos portugueses para reverem a sua posição face a Passos Coelho.
Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 13 de fevereiro de 2015 e na sua edição online.