A entrevista do primeiro-ministro à SIC foi um verdadeiro monumento de mistificação e distorção grosseira dos factos. Começou na Grécia, passou pelos números do desemprego e do défice e acabou com o anúncio do fim da austeridade.
Na questão da Grécia, chegou a ser patético. Contra toda a evidência testemunhada pelo Mundo inteiro em dias seguidos de elevada tensão negocial, Passos quis convencer-nos de que “houve sempre unanimidade no Eurogrupo”, o qual, vejam lá, até deu provas de uma imensa “generosidade” para com a Grécia. Esqueçam, portanto, as resistências da Finlândia e da Alemanha e a preferência de Schäuble pelo ‘Grexit’ temporário; esqueçam as iniciativas e pressões de Hollande e o sonoro “basta!” de Renzi – nada disso conta. O nosso excelentíssimo primeiro-ministro, que esteve lá, viu tudo ao contrário de toda a gente: total “unanimidade” e profunda “generosidade”, garante ele. E, em boa verdade, já que inventou uma história tão bonita, porque não arranjar-lhe também um final feliz? Se bem o pensou, melhor o fez. Vai daí, escolheu para si o papel principal: por acaso, a ideia para o acordo final até foi dele. Também por acaso, mais ninguém reparou nisso. Mas um criativo talentoso nunca deixa que os factos atrapalhem uma boa história.
Nos números do desemprego, Passos andou perto da desonestidade intelectual. Começou por comparar a evolução da taxa de desemprego entre 2005 e 2011, durante os governos socialistas, omitindo que em 2011 se operou uma quebra de série por alteração da metodologia estatística do INE, o que transforma qualquer comparação linear numa pura fraude. Depois, atribuiu o aumento do desemprego nesse período ao “modelo de desenvolvimento económico socialista”, omitindo a redução do desemprego verificada entre 2005 e meados de 2008 e ignorando, ostensivamente, a crise financeira internacional que a partir de 2008 fez o desemprego aumentar não só aqui mas em toda a Europa; finalmente, descreveu uma imaginária dinâmica de criação de emprego na economia, escamoteando o único balanço que interessa: ao fim de quatro anos de governação PSD/CDS, centenas de milhares de empregos foram destruídos e o desemprego é hoje mais alto do que era quando a direita chegou ao poder.
Depois, veio a conversa dos défices de 2010 e 2011, numa tentativa esfarrapada de justificar a austeridade “além da troika” com as contas alegadamente “mal feitas” do Memorando inicial (que, aliás, o PSD também negociou). Ora, nem o défice oficial de 2010 era desconhecido ao tempo da negociação do Memorando (salvo quanto à fraude estatistica operada pelo Governo do PSD na Madeira, sendo que a revisão posterior, e retroactiva, da metodologia estatística do Eurostat em nada alterou o esforço orçamental pedido para efeitos do Memorando), nem o défice registado no primeiro semestre de 2011 (também inflaccionado pela fraude estatística do PSD na Madeira) justifica as medidas de austeridade que o Governo, por sua livre opção, de imediato resolveu tomar (designadamente, o corte de 50% do subsídio de Natal, que o Expresso garantiu na altura já estar decidido pelo Governo muito antes de conhecidos os números do défice) e depois ainda agravou mais em 2012 (cortando salários e pensões) e 2013 (com o enorme aumento de impostos). Ao contrário do que diz Passos, a verdade é que houve nisto tudo uma escolha de política orçamental do Governo, que sempre acreditou nas virtudes redentoras da austeridade e do empobrecimento – e gabou-se disso. Acresce, em todo o caso, que o défice de 2011 acabou por ficar muito abaixo (e não muito acima!) da meta prevista no Memorando e isto porque o país dispunha de uma medida alternativa e extraordinária (a transferência dos fundos de pensões), a que o Governo acabou por recorrer já tarde demais. Por muito que custe, descontado esse efeito extarordinário registado nas contas do segundo semestre de 2011 e a fraude estatística do PSD na Madeira, o famoso défice do primeiro semestre de 2011, que o primeiro-ministro agora diz estar na origem de todos os sacrifícios destes quatro anos, foi MENOR do que o défice obtido na gestão orçamental do segundo semestre de 2011, já com o Governo de Passos e Portas. É por essas e por outras que estes senhores não podem ficar a falar sozinhos sobre tudo isto, como se fosse deles a verdade histórica e a pudesssem manipular a seu bel prazer para efeitos de campanha eleitoral.
Finalmente, o primeiro-ministro acabou a sua entrevista à SIC com chave de ouro, prometendo acabar com as medidas de austeridade e até esboçando uma vaga intenção de “combater as desigualdades”. Mas não é nada urgente: fica para a próxima legislatura. Foi aqui que a jornalista Clara de Sousa terá achado que a coisa estava a ir um bocado longe demais e perguntou como é que o primeiro-ministro conciliava isso com a decisão já anunciada pelo Governo de cortar ainda mais 600 milhões de euros nas pensões de reforma. Infelizmente, não se percebeu nada da resposta.
Artigo publicado no Diário Económico de 17 de julho e na sua edição online.