Escaldado por ter sido o primeiro a defender a medida da TSU, o ministro da Segurança Social, Mota Soares, assim que soube da divulgação do Relatório do FMI sobre os cortes na despesa pública, terá pensado: “não me apanham noutra”. E disparou logo na primeira oportunidade: algumas das sugestões do Relatório “partem de pressupostos que estão errados” e outras “não têm a minha concordância“.
Curiosamente, quando se esperava uma resposta do FMI em defesa da honra, quem apareceu a responder ao ministro foi o próprio secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Carlos Moedas (muito carinhosamente tratado no Governo, segundo revelou o Expresso, como “o grilo falante da ‘troika'”). Explicou ele: “o senhor ministro da Segurança Social referia-se seguramente a alguma versão preliminar ou a algum ponto que não faz parte da versão final”. E contrapôs: este é um Relatório “muito bem feito, muito bem trabalhado (…), muito completo”.
Naturalmente, tanto empenho na defesa de um Relatório aparentemente alheio, ainda por cima leviano e desastrado, causou estranheza. O mistério, porém, vem explicado logo na página 5 do próprio Relatório. Vale a pena ler (tradução minha): “Ao elaborar este Relatório, a equipa (do FMI) beneficiou muito das discussões com ministros e, ou, secretários de Estado de todos os onze ministérios, bem como com os seus ‘staffs’ e com vários representantes de outras organizações. Especificamente, a missão reuniu com os ministros” (todos nominalmente identificados no texto). E continua: “A equipa de missão beneficiou grandemente da orientação (“guidance”) providenciada pelos Secretários de Estado Luís Morais Sarmento e Hélder Rosalino, do ministério das Finanças, e Miguel Morais Leitão, do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A equipa deseja expressar o seu sincero agradecimento pelas excelentes discussões e contribuições providenciadas pelos representantes do Governo com os quais reuniu”.
Verdadeiramente, o que Carlos Moedas recordou ao ministro Mota Soares é que o Relatório, sendo embora do FMI, resultou de uma intensa interacção com o Governo e com todos os ministros, que tiveram conhecimento das versões preliminares, deram contributos, colaboraram na quantificação das medidas e tiveram a oportunidade de corrigir erros, sugerir alterações ou propor a eliminação de certas referências. Dito de outra forma: se este Relatório é um “contributo do FMI” também é verdade que assenta no contributo intenso do próprio Governo, coordenado pela ESAME (estrutura que depende do Secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro). Em suma, quando Carlos Moedas veio dizer que este é um Relatório “muito bem trabalhado” era afinal o trabalho do Governo que ele estava a defender.
O que não se compreende é que o Secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro nos pretenda convencer que este Relatório é “muito completo” e “muito bem feito”. Se está “completo” um Relatório sobre a despesa que corta nos salários, na protecção social e nos serviços públicos mas passa ao lado das famosas “gorduras do Estado”, então tem de se concluir que o que estava “muito mal feito” era o programa eleitoral do PSD, escrito pelo próprio Moedas em parceria com Eduardo Catroga, sob a orientação (“guidance”) de Passos Coelho. Não custa admitir que seja esse o caso. Mas há um “pequeno” problema: é que o programa que foi a votos foi o do PSD, não foi este programa que o FMI fez agora, com a ajuda do Governo.
PS – Face a estas propostas brutais contra os trabalhadores e o Estado Social, não resisto a recordar o que eu próprio disse, em representação do Governo anterior, no discurso de encerramento do debate parlamentar sobre a rejeição do PEC IV, que lançou o País nesta aventura: “A extrema-esquerda parlamentar dirá o que disser mas não pode ignorar que quando a direita precipita esta crise e vem falar de uma coligação alargada, do que está a falar, realmente, é de uma coligação alargada ao FMI, porque é para aí que esta irresponsável crise política ameaça levar o País. E se os senhores acham que é já o FMI que governa, então desenganem-se, porque é caso para dizer que ainda não viram nada!”
Artigo publicado no Diário Económico