Para quem não sofra de iliteracia nem esteja de má-fé, o que está escrito sobre a TAP no Memorando inicial da “troika” não permite duas interpretações: não está lá nenhum compromisso de privatização total da TAP, ao contrário do previsto para a EDP e a REN.
Convém esclarecer que o acordo com a ‘troika’ foi vertido em dois documentos distintos mas coerentes, um dirigido à Comissão Europeia e outro dirigido ao FMI. O primeiro refere as privatizações no ponto 3.31 (págs. 14 da versão portuguesa e 45 da versão inglesa) e o segundo refere-as no ponto 17 (págs. 7 da versão portuguesa e 8 da inglesa). Contudo, todas as versões, em inglês ou português, são, no que se refere à TAP, substancialmente iguais e não consentem qualquer margem de interpretação. Todos os textos são igualmente claros e todos dizem rigorosamente o mesmo.
Tomemos o documento base do acordo, que é o Memorando dirigido à Comissão. O texto começa por assumir um compromisso genérico de calendário ao dizer que o Governo “acelerará” o programa de privatizações. Depois, recorda o plano de privatizações já existente, mencionando, para o que aqui interessa, que esse plano abrange a TAP mas apenas prevê a “alienação parcial” de “todas” as empresas de maior dimensão. Até aqui, portanto, nenhuma novidade: apenas a descrição do programa de privatizações previsto desde Março de 2010 no PEC 2010-2013 (o chamado PEC I) e reafirmado no Relatório do Orçamento para 2011 (o chamado PEC III, já que as medidas adicionais adoptadas na sequência da crise grega, em Maio de 2010, a que se convencionou chamar PEC II, são omissas sobre a matéria). Ora, basta consultar os quadros sobre privatizações constantes desses documentos (págs. 36 do PEC I e 165 do Relatório OE2011) para que não possam restar quaisquer dúvidas: a TAP aparece sempre na lista das empresas a submeter a uma mera alienação PARCIAL. E esta intenção manteve-se no PEC IV, que nem sequer se referiu à percentagem das privatizações mas apenas ao respectivo calendário.
As únicas novidades do Memorando em matéria de privatizações, em que de facto se vai além do plano até então existente, são as que o texto refere a seguir. E cito: “O Governo compromete-se a ir ainda mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da totalidade das acções na EDP e na REN, e tem a expectativa que as condições do mercado venham a permitir a venda destas duas empresas, bem como da TAP, até ao final de 2011”. Temos aqui, claramente, duas afirmações diferentes: a primeira, refere-se à percentagem das privatizações e apenas contém um compromisso de alienação total para os casos da EDP e da REN; a segunda, refere-se exclusivamente ao calendário e é a esse propósito que surge uma menção à TAP, na medida em que se exprime a expectativa de que as condições do mercado permitam concretizar até ao final de 2011 as operações previstas de venda não apenas da EDP e da REN mas também da TAP. É exactamente porque não se quis aplicar à TAP o compromisso de alienação total que a redacção do Memorando é aquela que é, separando e distinguindo a referência à TAP da que é feita às empresas do sector energético. Como é óbvio, se a intenção fosse aquela que Passos Coelho e Marco António Costa pretendem, essa distinção não teria razão de ser e o texto diria simplesmente: “O Governo compromete-se a ir ainda mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da totalidade das acções na EDP, na REN e na TAP, e tem a expectativa que as condições de mercado venham a permitir a venda destas três empresas até ao final de 2011”. Mas não é isso que lá está. E por uma razão simples: o propósito de venda total não se aplicava à TAP. A única coisa que se tornou comum à privatização das três empresas foi o calendário expectável das respectivas (e diferentes) operações de venda.
Não têm razão, igualmente, os que, embora reconhecendo que não está prevista no Memorando a privatização total da TAP, sustentam que António Costa também não está certo quando diz que o Memorando prevê a privatização parcial, visto que não estaria lá nem uma coisa nem outra. A verdade é que António Costa tem toda razão: é precisamente por não impor a alienação total da TAP (e, como se viu, não pode haver duas interpretações sobre isso) que só pode concluir-se que o Memorando não alterou – e portanto manteve – o plano de privatizações existente na parte em que previa a venda apenas parcial da TAP. Sinceramente: isto oferece alguma dúvida?
Texto de opinião publicado no Diário Económico de 19 de dezembro e na sua edição on-line.