Ninguém se entende: está instalada a total confusão sobre o carácter transitório ou permanente dos cortes nas pensões e nos salários da Função Pública.
Ao consentir em tamanha barafunda, o Governo está mais uma vez a brincar com o fogo e a alimentar uma perigosa provocação ao Tribunal Constitucional.
Ao contrário do que muitas vezes se diz, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido até bastante compreensiva para com a situação excepcional que o País vive. Desde o início que o Tribunal tem sabido atender às exigências da situação financeira, inclusivamente perfilhando e aplicando um entendimento não absoluto do princípio da confiança. Foi por isso que o Tribunal permitiu cortes salariais na função pública (que vigoram já desde 2011); foi por isso que permitiu que os cortes nos subsídios de férias e de Natal produzissem os seus efeitos em 2012 mesmo sendo inconstitucionais (por violação, note-se, não do princípio da confiança mas do princípio da igualdade proporcional) e foi também por isso que, contra o vaticínio de muitos, o Tribunal permitiu a aplicação, já neste ano de 2013, da muito gravosa Contribuição Extraordinária de Solidariedade sobre os pensionistas. Tudo isto, o Tribunal Constitucional aceitou. E aceitou, justamente, tendo em conta a excepcionalidade da situação financeira e o carácter clara e assumidamente transitório das medidas em causa. Não convém abusar da sorte.
Sucede que o Governo alterou profundamente os dados do problema com as suas novas propostas em matéria de cortes nos salários e nas pensões, quer no Orçamento para 2014, quer em legislação autónoma. Até aqui, o carácter transitório das medidas de austeridade para fazer face à situação financeira esteve sempre associado aos compromissos internacionais assumidos por Portugal e aos respectivos períodos de vigência, que eram conhecidos e verificáveis – seja no caso dos Programas de Estabilidade e Crescimento, seja no caso do Programa de Assistência Económica e Financeira. Daqui para a frente, porém, o carácter dito “transitório” das medidas de austeridade passa a ficar dependente de referências totalmente imprecisas e de controlo impossível ou arbitrário ou, na melhor das hipóteses, de factos futuros de verificação incerta (para não dizer altamente improvável), como seja a obtenção duradoura de determinados níveis de crescimento económico e de redução do défice que nunca foram atingidos por Portugal no passado e que ninguém – nem o Governo – prevê que sejam atingidos num prazo razoável. Ora, uma coisa é adoptar medidas excepcionais e temporárias em razão de uma contingência também ela excepcional e temporária, outra coisa, bem diferente, é adoptar medidas a pretexto de uma situação excepcional mas para vigorarem indefinidamente, até que sejam afastadas por novas e normais escolhas futuras de política orçamental ou quando se verificarem factos que, em bom rigor, não podem aceitar-se como caracterização do fim da actual situação de excepção. Como está bem de ver, um facto que nunca ocorreu – como o crescimento económico de 3% em dois anos consecutivos, ainda por cima acompanhado de um défice estrutural não superior a 0,5% – não pode servir para ilustrar o regresso à “normalidade”.
Com esta alteração substantiva do horizonte temporal de aplicação das medidas de austeridade, o Governo sabe que entra em perigosa rota de colisão com o pressuposto que levou o Tribunal Constitucional a aceitar medidas análogas no passado. E é por isso que a discussão sobre o carácter transitório ou permanente dos cortes anunciados se tornou num tão complicado jogo de palavras, que só podia resultar em contradições e confusão. Mas, lá no fundo, a questão é simples e é esta: fiel à sua linha ideológica de sempre, o Governo acha que a austeridade veio para ficar. E é por isso que o que antes era apresentado como transitório se vai revelando permanente. À vista de todos. E à vista também do Tribunal Constitucional.
Artigo publicado no Diário Económico