23.01.15

As duas privatizações da TAP

Um dos embustes da privatização da TAP é a ideia de que o Governo só está a vender 66% da empresa, cabendo ao próximo Governo, numa segunda fase, avaliar e decidir sobre a eventual venda dos remanescentes 34%.

Tudo treta: esta privatização da TAP é a100% e o próximo Governo ficará impedido de a travar.

O Governo fez crer que, aprendida a lição da última tentativa falhada de privatização da TAP, decidiu desta vez, por uma questão de prudência, privatizar “apenas” 66% do capital social da empresa, conservando nas mãos do Estado uma “minoria de bloqueio” (34%) alegadamente suficiente para garantir a salvaguarda do interesse público. A venda do capital social remanescente ficaria assim remetida para uma segunda fase, daqui a dois anos, em que caberia já ao próximo Governo (porventura socialista) avaliar o cumprimento pelo adquirente das obrigações do caderno de encargos e decidir sobre a venda dos restantes 34%. E com uma salvaguarda fixada já em letra de lei: o próximo Governo, por malvado que seja, não poderá vender as acções remanescentes por um preço inferior ao fixado para as acções alienadas agora. É este o quadro idílico de privatização dita “parcial” da TAP descrito pelo Governo. Só que é falso. E passo a explicar porquê.

É verdade que o Decreto-Lei nº 181-A/2014, de 24 de Dezembro, além de prever a venda directa de 66% do capital social da TAP (61% para um privado e 5% para os trabalhadores), estabelece que o Estado beneficia de uma “opção de venda” sobre o adquirente privado quanto aos restantes 34% (artigo 2º, nº 2). Esse “benefício” vem regulado no artigo 5º, sob a vistosa epígrafe “opção de venda”, e significa que, ao fim de dois anos, o Estado, se fizer uma avaliação positiva do cumprimento das obrigações pelo parceiro privado, pode forçar o adquirente a ficar também com o capital remanescente da TAP (em condições que ficam desde já contratualizadas).

Mas não há motivo para alarme: trata-se de uma mera opção. O que o Governo não diz é que se o próximo Governo não exercer dentro do prazo essa “opção de venda” o adquirente privado goza, nos seis meses seguintes, de uma “opção de compra” da totalidade do restante capital social (v. artigo 2º, nº 3). Acontece que a esta “opção de compra” pelo privado corresponde, salvo incumprimento de obrigações legais ou contratuais, uma obrigação de venda por parte do Estado. Assim, aquilo que parecia ser uma “opção” de venda dos restantes 34% da TAP converte-se numa verdadeira venda forçada.

Dito de outro modo: mesmo que o próximo Governo não queira vender a bem pode ser obrigado a vender a mal – e lá se vai a minoria de bloqueio e qualquer presença do Estado no capital da TAP.

Talvez para não criar embaraços na promulgação pelo Presidente da República, a redacção do Decreto-Lei não chega propriamente a garantir a existência da referida opção de compra, diz apenas (sem o destaque de um artigo autónomo, nem epígrafe a “bold”…) que ela “pode” ser acordada com o adquirente “nos termos do caderno de encargos”. Torna-se por isso necessário consultar a Resolução do Conselho de Ministros nº 4-A/2015, de 20 de Janeiro, que aprova o dito caderno de encargos, para ficar a saber que o Governo, por espantosa coincidência, entende “ser este o momento adequado” para aprovar desde já o regime da futura opção de compra. Em conformidade, o número 3 da Resolução estabelece que a opção de compra dos restantes 34% da TAP terá como preço mínimo o da venda directa consumada agora, cabendo aos interessados propor “os critérios e fórmulas” para o “cálculo do preço” final (vd. artigo 7º, nº 2, alínea a) do caderno de encargos). Em suma, fica tudo tratado agora: o Governo não só concede desde já aos privados o direito a comprar a totalidade do capital social da TAP, como conclui com eles, já nesta fase, a negociação das condições em que o Estado se obriga a vender os restantes 34% do capital.

A conclusão não oferece dúvidas: o que está a ser decidido neste momento não é apenas a privatização de 66% do capital social da TAP mas também a privatização dos restantes34%- cuja alienação, embora já negociada, fica temporariamente suspensa e sob condição resolutiva (porque dependente do cumprimento das obrigações previstas para os primeiros dois anos). É motivo para dizer que neste caso da TAP todo o cuidado é pouco: uma privatização pode esconder outra.

 

Texto de opinião publicado no Diário Económico de 23 de janeiro e na sua edição online.