O Primeiro-Ministro revelou esta semana, na sua entrevista à TVI, a primeira sugestão concreta do Governo no âmbito do processo de reforma do Estado para o corte de 4 mil milhões de euros na despesa pública: a introdução de propinas no ensino secundário. Não deixa de ser espantoso: bem vistas as coisas, a primeira medida do Governo para o corte da despesa é, afinal, mais uma medida de aumento da receita!
É muito revelador que o Primeiro-Ministro, no lançamento da discussão sobre a despesa pública, não tenha começado por propor a eliminação de nenhuma “gordura do Estado” nem tenha avançado com qualquer medida de racionalização da despesa – isso, já se percebeu, era só conversa de campanha. A única coisa de concreto que lhe ocorreu foi sugerir a possibilidade de pedir ainda mais sacrifícios aos cidadãos para aquilo a que chamou o “financiamento mais repartido” da despesa com educação – como se as famílias não financiassem já a educação pública através da elevadíssima carga fiscal que têm de suportar. De facto, é em cima da brutalidade fiscal “além da troika” que o Governo desde o início adoptou e do “enorme aumento de impostos” previsto para 2013 (que se prolongará, evidentemente, pelo menos para 2014) que o Governo pretende agora, a pretexto da “redução da despesa”, agravar ainda mais os encargos a suportar pelas famílias com filhos na área da educação – e isto só confirma a total e absoluta insensibilidade do Primeiro-Ministro face às enormíssimas dificuldades que as famílias estão a enfrentar.
Certo é que a eventual redução da despesa pública que poderia resultar desta medida seria não o fruto de qualquer racionalização da despesa do Estado mas sim o mero efeito da transição para um outro modelo de financiamento da educação, assente no co-pagamento das despesas pelas próprias famílias utilizadoras do sistema público de ensino. Ao que disse o Primeiro-Ministro, a nossa Constituição “dá margem” para essa alteração, de implicações obviamente tremendas na garantia de acesso à educação, um dos pilares do nosso Estado Social. Sucede, porém, que isso não é verdade: essa afirmação do Primeiro-Ministro é apenas mais um sinal do seu problema crónico de impreparação.
Na verdade, a Constituição estabelece, taxativamente, o carácter não só universal e obrigatório mas também gratuito do ensino básico que incumbe ao Estado assegurar (Artº 74º nº 2 al. a)). Não há, por isso, nenhuma dúvida, à luz dessa alínea da Constituição, de que o ensino básico (até ao 9º ano) é forçosamente gratuito – daí que tenham de imediato surgido interpretações correctivas que indicavam que o Primeiro-Ministro estava apenas a referir-se ao ensino secundário. Só que a Constituição não determina apenas a gratuitidade do ensino básico, diz também, noutra alínea, que incumbe ao Estado “estabelecer PROGRESSIVAMENTE a gratuitidade de TODOS os graus de ensino” (Artº 74º nº 2 al. e) – preceito, aliás, que o PSD já pretendia eliminar no seu projecto de revisão constitucional). Ora, como bem se compreende, se a Constituição manda progredir numa determinada direcção é evidentemente inconstitucional legislar em sentido contrário. Quer isto dizer que, uma vez estabelecida a gratuitidade do ensino secundário, é manifestamente inconstitucional retroceder para um modelo de co-pagamento com propinas suportadas pelas famílias. E pior ainda seria fazê-lo quando o ensino secundário passa a ser, também ele, obrigatório.
Esta ideia do Primeiro-Ministro é apenas mais uma ideia lamentável que, felizmente, não tem pernas para andar. E fica difícil saber o que mais devemos lamentar: se um Primeiro-Ministro impreparado, que desconhece aspectos básicos da nossa Constituição; se um Primeiro-Ministro insensível, que insiste na receita da austeridade sobre as famílias; se um Primeiro-Ministro sem visão que, num País como este, não percebe a função dos direitos sociais e admite pôr em causa o mais decisivo instrumento de promoção das qualificações e da igualdade de oportunidades. Mas que tudo isto é lamentável, lá isso é.
Artigo publicado no Diário Económico