29.11.21

Brexit: a tentação do precipício

A União Europeia, é preciso reconhecer, tem resistido com infinita paciência às constantes provocações e ameaças do Governo de Boris Johnson, bem como às suas repetidas violações dos compromissos assumidos no Acordo de Saída da União Europeia, em especial no Protocolo da Irlanda do Norte.

Como relator do Parlamento Europeu para a implementação do Acordo do Brexit e único eurodeputado português pertencente ao Grupo de Coordenação para o Reino Unido, tenho acompanhado de perto toda esta infindável turbulência, que semeia uma permanente insegurança na vida dos cidadãos e das empresas e chega ao ponto de brincar com o fogo, pondo em risco as conquistas do processo de paz entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, vertidas no célebre Acordo de Sexta-Feira Santa.

Todos os que estiveram sentados à mesa das negociações do Acordo de Saída, incluindo, na parte final, o próprio Boris Johnson, sabiam bem o que estava em causa: para evitar a reposição dos odiosos e traumáticos controlos fronteiriços entre as duas Irlandas, a salvaguarda da integridade das regras do mercado único europeu (obviamente ameaçada pela divergência regulatória decorrente da saída do Reino Unido da União Europeia) impunha que os necessários controlos aduaneiros fossem assegurados pelas próprias autoridades do Reino Unido a montante, no Mar da Irlanda, entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha. Foi esse o acordo que o Reino Unido livremente aceitou e assinou, consentindo na sua entrada em vigor como obrigação jurídica de Direito Internacional.

Desde sempre, ficou claro que esses controlos fronteiriços seriam limitados ao estritamente necessário, abrangendo apenas os bens oriundos da Grã-Bretanha que pudessem ter por destino o mercado europeu e não os que, comprovadamente ou pela sua natureza, tivessem por destino a própria Irlanda do Norte. Ainda assim, face às resistências do Reino Unido em dar cumprimento às suas obrigações, a Comissão Europeia foi até aos limites da flexibilidade possível ao apresentar, no passado mês de outubro, uma proposta que aceitava reduzir a burocracia aduaneira em 50% e os controlos sanitários e fitossanitários em 80%, para além de flexibilizar as regras de modo a garantir o abastecimento do mercado da Irlanda do Norte em matéria de medicamentos e produtos farmacêuticos. Não obstante, o Governo de Boris Johnson – para gáudio da sua plateia de “brexiteers” radicais – insiste em alimentar a ideia de uma renegociação do Protocolo da Irlanda do Norte (como David Frost recentemente defendeu em Lisboa) e, entretanto, parece teimar no litígio e nas suas ameaças de ativar o “Artigo 16”, um mecanismo legal que permite às partes, em circunstâncias muito excecionais, desvincular-se do acordado. De tal modo que a própria Confederação da Indústria Britânica, cansada de tanta brincadeira com coisas sérias, teve de vir esta semana apelar ao Governo do Reino Unido para normalizar as relações com a União Europeia e abandonar de vez qualquer intenção de recorrer a esse explosivo Artigo 16.

A manter-se por muito mais tempo esta atitude intransigente e conflituosa do Governo britânico, que não se fica pela Irlanda do Norte antes se estende a outras questões sensíveis como as pescas e certos aspetos dos direitos dos cidadãos, da circulação de pessoas e dos controlos migratórios, uma escalada de tensões e de retaliações pode tornar-se inevitável, ameaçando a boa aplicação do Acordo de Comércio e Cooperação que regula a nova relação política e económica entre a União Europeia e o Reino Unido. Ninguém ganhará com isso. Oxalá do outro lado do Canal da Mancha o bom senso prevaleça sobre a tentação do precipício.

Artigo publicado a 26/11/2021 no Público Online.