Foi com os olhos postos no pomposo modelo “jupiteriano” encenado pela presidência de Macron – “um Deus de palavra rara, no seu Olimpo” – que Cavaco Silva voltou esta semana à intervenção pública e à militância partidária no seu partido de sempre. Num discurso em tom amargo e ressentido, que acabou por ter mais de mitologia do que de inspiração divina, Cavaco mostrou-se incapaz da elevação que o seu estatuto de ex-presidente recomenda e, como é seu hábito, não resistiu à mundana tentação de vir a terreiro para distribuir “caneladas” à Esquerda e à Direita, tomando como alvos os seus tradicionais ódios de estimação: jornalistas e “políticos”, agora com destaque para os “socialistas revolucionários” instalados no Governo e para o presidente-comentador que lhe sucedeu no Palácio de Belém.
Marcelo optou por não disfarçar – e fez bem. Com impecável luva branca, deu uma lição de boas maneiras e lembrou uma velha máxima: os políticos que querem ser respeitados devem dar-se ao respeito. Verdade seja dita, ele sabe do que fala. O que Marcelo fez nesta primeira fase do seu mandato – com a sua presidência colorida e omnipresente, de proximidade e de afetos, mas também de sólida cooperação institucional e de ativa magistratura de influência – foi recuperar o prestígio de um cargo que Cavaco tinha atirado para as ruas da amargura com a sua presidência de fação. Se o objetivo era lançar o debate sobre os dois “modelos de presidência”, o de Cavaco e o de Marcelo, estamos conversados.
Mas o que mais impressiona no discurso de Cavaco é o mito que permanentemente tenta alimentar de si próprio como se fosse uma figura “fora da política”, quase um extraterrestre – “um Deus no seu Olimpo”, sabemos agora… – que paira acima desse execrável universo em que se movimentam os partidos e os políticos pecadores. É a encenação desse mito que explica aquele ar pio de quem acaba de descer à Terra para pronunciar, em tom professoral, as mais severas sentenças morais contra esses malvados “políticos” que se atrevem a coisas tão horríveis como comentar a atualidade ou, imagine-se, telefonar a jornalistas.
Foi caricato, obviamente, ver Cavaco Silva a denunciar o imaginário “regresso da censura” ao mesmo tempo que falava livremente e em direto para todas as televisões. Mais caricato, porém, é vê-lo, depois de uma tão longa carreira política, a pretender falar “de fora para dentro”, tal como é caricato vê-lo, depois de ter patrocinado o indigno “caso das escutas”, a pretender falar “de cima para baixo”. Falta-lhe, evidentemente, a legitimidade política para tanta distância e a autoridade moral para tanta superioridade.
Artigo publicado no Jornal de Notícias