Denunciada que foi a monumental trapalhada da expedição ilegal para Londres da colecção de Joan Miró, o Governo dedicou-se à sua especialidade do costume: passar culpas.
Desta vez, a fava saiu à Christie’s, uma das mais prestigiadas empresas do mundo em leilões de obras de arte. O que se viu não é bonito. Nem verdadeiro.
A tentativa desesperada de passar culpas começou logo na intervenção insólita do secretário de Estado da Cultura – que aliás revelou em todo este processo a sua total irrelevância e o grau zero a que chegou a política cultural. Depois de incrivelmente tentar responsabilizar o governo do Partido Socialista pelo “buraco do BPN” (só lhe faltou dizer que o BPN era um banco socialista…), o secretário de Estado esforçou-se por imputar ainda ao anterior governo o início do processo de venda da colecção Miró – mesmo sabendo que isso é totalmente falso.
Na verdade, basta consultar o Relatório e Contas de 2012 da sociedade detentora da maior parte das obras, a Parvalorem (assinado já pelo seu actual presidente, o insuspeito Francisco Nogueira Leite, ex-administrador da Tecnoforma), para se perceber que o processo de alienação da colecção Miró apenas teve início a partir do final desse ano. Para que não restem dúvidas e não se insista na mentira, passo a transcrever: “O processo de inventariação e determinação de propriedade e localização das Obras, revelou-se bastante complicado pela sua dispersão física e documental, pelo que só no final do ano 2012, foi possível apresentar um Plano de Atuação relativo ao portfólio (…). Relativamente à coleção Miró, a tomada de posse efetiva da totalidade do portfólio ocorreu apenas no passado mês de Dezembro, pelo que se prevê a curto prazo o INÍCIO do processo de alienação” (cfr. pág. 25, sublinhado nosso).
Mas se o Governo não pode fugir à responsabilidade pela decisão – que é exclusivamente sua – de vender a colecção Miró, também não é aceitável que, com tanta ligeireza, pretenda transferir para a leiloeira Christie’s todas as responsabilidades pela expedição “manifestamente ilegal” daquelas obras de arte. É certo, o Governo apressou-se a desmentir a notícia do Expresso segundo a qual a colecção de Miró teria sido expedida para Londres através de “mala diplomática”. Tomámos boa nota dessa informação. Subsiste, porém, uma perguntinha maçadora: afinal, de quem era a mala?
Entendamo-nos: quando se refere uma “expedição manifestamente ilegal da colecção Miró” do que estamos a falar é do trânsito pela fronteira, de Lisboa até Londres, de uma vastíssima colecção de nada menos de 85 (!) obras de arte, algumas delas de enormes dimensões, no valor total de várias dezenas de milhões de euros e que terão viajado, ao que parece, desacompanhadas das necessárias autorizações e respectivas guias de transporte. A ideia de que a experiente e prestigiada leiloeira Christie’s, conhecedora como é dos procedimentos legais, aceitou, por sua própria conta, prestar um tal serviço e concretizou, sem qualquer cooperação das entidades públicas, uma operação tão flagrantemente irregular, é tudo menos convincente. O Governo precisa de fazer muito mais para apresentar uma história mais bem contada.
E não se pense que o cumprimento da lei é, como se pretende fazer crer, uma mera formalidade burocrática. Cumprir a lei, neste caso, é um meio essencial para garantir a salvaguarda do património cultural. De facto, é em nome desse património cultural que se exigem todos os pareceres, todas as autorizações, toda a transparência e toda a responsabilidade. Quando 85 obras de arte, no valor de dezenas de milhões de euros, saem ilegalmente do País, a primeira pergunta que exige resposta é esta: quem era, afinal, o dono da mala?
Artigo publicado no Diário Económico