Depois de aqui ter chamado a atenção para a página 5 do Relatório do FMI sobre os cortes na despesa pública (onde explicitamente se confessa que aquele documento dito “técnico” contou afinal com a colaboração e a orientação do próprio Governo), devo agora chamar a atenção para outra curiosa página do mesmo Relatório, ainda não referida: a página 17.
O que se pode ler nessa página 17 é muito interessante (tradução minha): “Em 2014, o Governo pretende recentrar o ajustamento orçamental no lado da despesa, onde um recente exercício de análise comparativa (‘benchmarking exercise’) sugere que o Estado permanece demasiado grande em relação a países comparáveis, sendo a despesa particularmente elevada em protecção social, educação, saúde e segurança que, no seu conjunto, totalizam cerca de 2/3 das despesas do Estado. Para alcançar a sustentabilidade orçamental, o Governo vê necessidade de reduzir a despesa em cerca de 4 mil milhões de euros até 2014”.
Com esta passagem, para além de ficarmos a saber (como já se suspeitava) que é o Governo (e não o FMI) que afirma ser necessário o corte de 4 mil milhões de euros, ficamos também a saber que a identificação das áreas em que devem ser feitos os cortes, no pressuposto de que aí o Estado é “demasiado grande”, resulta não propriamente do Relatório do FMI mas sim do “exercício de análise comparativa” que consta de um outro Relatório que lhe serve de base. A pergunta que se impõe é óbvia: afinal, que outro Relatório é esse?
Uma reveladora nota de pé de página, também na página 17, explica tudo: “O exercício de análise comparativa (‘benchmarking exercice’
),
que o Governo elaborou no início deste ano, analisa o desenvolvimento de diversas rubricas de despesa do Estado ao longo do tempo e compara os padrões portugueses de despesa e respectivos resultados com os de países comparáveis da União Europeia”. A conclusão só pode ser uma: por incrível que pareça, além do tão falado Relatório “do FMI”, há um outro Relatório sobre a despesa pública feito pelo próprio Governo mas que, até hoje, continua secreto!
É indispensável que o Governo, de uma vez por todas, deixe de se esconder atrás do FMI e trate de divulgar, imediatamente, esse seu outro Relatório. Afinal, é nesse Relatório do Governo que constam os pressupostos em que se baseou o Relatório do FMI: os dados de base sobre a evolução da despesa pública; a avaliação do Governo sobre os resultados obtidos pelo nosso Estado Social nos domínios da educação, da saúde e da protecção social, bem como a análise comparativa desses níveis de despesa e desses resultados com os de outros países europeus. Um documento desses não pode continuar secreto!
A continuar assim, o debate sobre a reforma do Estado, que ainda agora começou, corre o risco de se tornar irremediavelmente burlesco: contributos “técnicos” com erros grosseiros, debates à porta fechada, jornalistas impedidos de fazer jornalismo, relatórios secretos – é óbvio que isto não são maneiras de promover um debate público sério numa sociedade democrática.
É por isso que António Pires de Lima, presidente do Conselho Nacional do CDS, se enganou no alvo quando apareceu esta semana a dizer que, ao arrepio da vontade do primeiro-ministro, a estratégia de comunicação do Governo está a ser torpedeada por uma maldita “toupeira” instalada no interior do próprio Governo, em conluio com um comentador ex-líder do “outro partido” da coligação. Na verdade, antes de se criticar a desastrosa “estratégia de comunicação” do Governo, que só ao Governo diz respeito, é preciso denunciar frontalmente a “estratégia de não comunicação” do primeiro-ministro, que diz respeito à própria democracia. A bem da transparência e, agora sim, contra a asfixia democrática.
Artigo publicado no Diário Económico