23.05.25

É preciso ter calma

O PS teve um péssimo resultado nas legislativas, mas é preciso ter calma. Isto não é o fim, nem sequer o princípio do fim do Partido Socialista. A queda abrupta do PS é motivo de justificada preocupação para todos os socialistas, mas seria um erro fatal tomarmos como boas as narrativas interesseiras dos nossos adversários quer quanto às causas destes resultados, quer quanto ao pretenso destino subalterno do PS. Aqui ficam cinco notas para reflexão.

Primeiro, não há nenhuma “pasokização” do PS. Sem o apuramento dos círculos da emigração, o PS cai 4,7 pontos percentuais e perde 19 deputados e 365 mil votos. É o terceiro pior resultado da sua história, agravado pelo facto inédito e traumático de passar virtualmente a ser a terceira força política no Parlamento, mas é preciso não esquecer que o PS teve, ainda assim, 23,3% e obteve cerca de 1 milhão e 400 mil votos (o que faz dele a segunda força política no País, não a terceira); ganhou as eleições europeias há menos de um ano e permanece um partido com uma forte implantação no território e no poder local, com todas as condições para ganhar as próximas eleições autárquicas e para se reerguer. A situação política em que se encontra hoje o PS não tem nenhuma semelhança com o colapso do PASOK na Grécia, com o colapso do PS francês, nem com qualquer outro colapso, porque este resultado esteve longe de corresponder a um colapso do Partido Socialista.

Segundo, desconfiemos das narrativas simplistas. O crescimento do Chega – que, em meia dúzia de anos, passa de1,3% para 22,5% e de 1 Deputado para 58 ou mais – não pode ser compreendido sem o enquadrar na tendência decrescimento da extrema-direita em toda a Europa, que agora soma ao apoio subterrâneo de Putin a aliança assumida com Trump e os gigantes do mundo digital, com os seus obscuros algoritmos e o seu colossal poder financeiro. O apontar de dedo aos propalados “erros do PS” e às alegadas responsabilidades dos seus anteriores líderes, seja Pedro Nuno Santos, seja António Costa, será muito conveniente para o combate ao PS, mas falha na compreensão das causas profundas do crescimento da extrema-direita, que não é um fenómeno estritamente português. Não quer isto dizer que o PS não tenha cometido erros que podem ter favorecido o crescimento do Chega e, até, o triunfo da AD, mas o crescimento da extrema-direita deve-se, sobretudo, aqui como em toda a parte, à eficácia do discurso populista, especialmente em torno dos temas da imigração, dos ciganos, da corrupção e, em geral, do combate ao “sistema” e aos “políticos”. O sucesso na exploração agressiva destes temas, potenciado pela cobertura mediática e pela hábil utilização das redes sociais, alimenta-se de descontentamentos e sentimentos de insegurança cujas causas devem ser combatidas sempre que correspondam a problemas reais, mas muitas vezes assentam – é preciso dizê-lo – em perceções induzidas pela difusão de notícias falsas, remetendo para uma disputa de factos e narrativas. Por outro lado, a facilidade com que estas perceções se propagam está ligada a uma causa profunda, que é mais cultural do que propriamente política: o ascendente social de anti-valores como o egoísmo, o ódio, a xenofobia e o nacionalismo, e o correspondente declínio dos valores da solidariedade, da tolerância, da inclusão e do cosmopolitismo. É também esse combate pelos valores que a família socialista europeia tem de travar para inverter esta situação. Desconfiemos, pois, das narrativas simplistas desenhadas à medida do combate partidário.

Terceiro, o crescimento da extrema-direita não ocorre necessariamente à custa dos partidos da família socialista. O crescimento da extrema-direita tem vindo a desgastar os partidos centrais dos sistemas partidários, desfazendo o tradicional bipartidarismo e penalizando mais ora um ora outro, conforme as circunstâncias e os ciclos governativos. É certo, os partidos socialistas europeus têm vindo a recuar na sua expressão eleitoral e na sua capacidade para liderar ou integrar governos, até porque o centro-direita tem menos pruridos em se deixar capturar pela agenda populista, mas convém lembrar que a família socialista permanece a segunda maior força política do Parlamento Europeu e que em vários países é o centro-direita quem mais perde com o crescimento da extrema-direita, como sucede nos casos da Itália e dos Países Baixos. Não há, portanto, nenhum determinismo que condene a família socialista, há sim um fenómeno de crescimento da extrema-direita que resulta em desgaste dos partidos centrais, com efeitos que se distribuem em função das circunstâncias e do ciclo político de cada país.

Quarto, no caso português o crescimento da extrema-direita fez-se agora mais à custa do PS, mas nem sempre foi assim e não tem de ser assim. Em 2022, quando o Chega surpreendeu ao crescer, face a 2019, de 1,5% para 7,1% e de 1 para 10 Deputados, isso não impediu o PS de subir e alcançar até a maioria absoluta. E em 2024, quando o Chega deu um novo salto para 18% e de 10 para 50 Deputados, isso não impediu o PS de, apesar da mudança de líder e do desgaste decorrente da sua longa governação, ficar “taco a taco” com a AD, obtendo 28,6% e perdendo apenas pelos célebres 50 mil votos. O que agora explica a especial penalização do PS é a conjugação do fenómeno do crescimento da extrema-direita em Portugal, comum a toda a Europa, com a dinâmica do nosso ciclo político: por um lado, o facto de o PS estar ainda marcado pelo desgaste dos seus 8 anos de governação, agravado pelo “poder de fogo” da propaganda do Governo; por outro, o facto de a AD estar no Governo ainda há pouco tempo e beneficiar do excedente orçamental deixado pelo PS, que lhe permitiu executar uma política ostensivamente eleitoralista. Certamente, o PS cometeu erros e os resultados mostram que não conseguiu convencer o País de quetinha uma alternativa melhor de Primeiro-Ministro e de Governo, mas seria um erro ainda maior ignorar o essencial.

Quinto, a AD ganhou as eleições, mas não teve maioria absoluta. A teoria que foi posta a circular é a de que os resultados investem o PS, até porque fragilizado, no papel incontornável de se assumir como “garante da estabilidade”. Ficariam, assim, viabilizados à partida não só o Programa do Governo como os seus futuros orçamentos; e ficaria a AD dispensada de “ter” de negociar com o Chega – e, já agora, também de negociar com o PS. Além disso, o PS ficaria desde já responsável por qualquer crise política futura. Ora, esta tese fará todo o sentido dentro da lógica de entregar a liderança da oposição ao Chega e reduzir o PS à função de notário das políticas de direita, conduzindo à sua definitiva subalternização e virtual eutanásia, mas não pode corresponder à estratégia de um PS que queira ter futuro. A verdade é outra: o facto de os portugueses terem recusado dar à AD a pretendida maioria absoluta, ainda que com a IL, constitui o Governo na obrigação de construir no Parlamento as condições da sua própria governabilidade. Dito de outro modo, o Governo não pode governar como se tivesse a maioria absoluta que os portugueses não lhe quiseram dar e dirigindo-se ao PS como se fosse o “cobrador do fraque” da estabilidade. Naturalmente, não imagino o PS a fazer outra coisa que não seja uma oposição responsável, pelo que, respeitando os resultados eleitorais e a composição do Parlamento, o PS deve viabilizar o Programa do Governo no momento fundador da legislatura. Quanto ao mais, o PS deve assumir-se como uma oposição firme, mas dialogante e construtiva, oferecendo uma via para a estabilidade na exata medida em que o Governo se disponha a percorrê-la com lealdade e isso corresponda aos interesses do País – o que não significa antecipar nenhuma posição que dispense o Governo de respeitar o PS, designadamente dando o seu voto como garantido em orçamentos que não se conhecem.

Deste ponto de vista, note-se, a AD não começa bem. Começou por negar ao PS a sua anterior condição de “parceiro preferencial”, como se lhe fosse indiferente negociar com um partido democrático ou com a extrema-direita. Pior, tratou logo de “rever em baixa” o famoso “não é não”, que passou a valer só para coligações de Governo ou acordos de incidência parlamentar, deixando de se aplicar à negociação de medidas legislativas, dos orçamentos, da nomeação de altos cargos do Estado e, até, de uma eventual revisão constitucional. A possibilidade aritmética de maiorias de dois terços com a extrema-direita, excluindo o PS, começou até a ser tratada como se fosse a única aritmética possível no novo quadro parlamentar. Ora, um PS firme na oposição tem de confrontar a AD com as suas responsabilidades e com as consequências do caminho que escolhe na construção das condições de governabilidade.

O PS tem muito trabalho pela frente e levará algum tempo até se poder afirmar como alternativa. Nesse percurso, terá de fazer a reflexão profunda que se impõe e para a qual a Fundação Res Publica, a que presido, não deixará de dar o seu contributo. Esse debate, de resto, já começou e vai certamente prosseguir, mas nem sempre o que é mais importante se compadece com o que é mais urgente. Urgente, para o PS, é fazer a melhor escolha possível para a sua liderança, reconstruir a sua unidade, mobilizar o melhor de si mesmo, definir o registo certo de oposição e ganhar as próximas eleições autárquicas. Tudo com muita determinação, mas também com lucidez e com calma. E, já agora, sem dar o corpo pela alma.

Artigo publicado na Ação Socialista Nº 1723 de 23/05/2025