Depois de dois orçamentos chumbados no Tribunal Constitucional, por violação de princípios fundamentais do Estado de Direito no corte de salários e de pensões, o Governo optou por apresentar à margem do Orçamento a sua proposta de novos cortes orçamentais através de despedimentos arbitrários na função pública.
Depois de dois orçamentos chumbados no Tribunal Constitucional, por violação de princípios fundamentais do Estado de Direito no corte de salários e de pensões, o Governo optou por apresentar à margem do Orçamento a sua proposta de novos cortes orçamentais através de despedimentos arbitrários na função pública. Não adianta disfarçar a razão desta táctica legislativa: o próprio Governo suspeitava que a sua proposta era inconstitucional. Houvesse no Governo um pouco menos de cegueira ideológica ou um pouco mais de competência e essa suspeita seria uma certeza. Afinal, foi corroborando a opinião largamente maioritária entre os constitucionalistas que os juízes decidiram, por unanimidade, que a proposta do Governo era inconstitucional.
A tendência do Governo para entrar em rota de colisão com a Constituição não constitui uma novidade, nem uma surpresa. O que surpreende é a insuperável incompetência com que essa tensão tem sido gerida. É certo, o primeiro-ministro diz que não tem problemas com a Constituição – só tem problemas com a interpretação que dela fazem, pelos vistos de forma unânime, os insensatos juízes do Tribunal Constitucional. Acontece que esse binómio não existe: de um lado, a Constituição, em forma pura; do outro, as suas interpretações. O que há é a Constituição, tal como interpretada. E sendo sem dúvida legítimas – no plano jurídico e no plano político – diversas interpretações da mesma Constituição, compete ao Tribunal Constitucional, na sua jurisprudência, fixar, de forma vinculativa na nossa ordem jurídica, a interpretação válida da Constituição. Dito de outra forma: se o primeiro-ministro tem problemas com a interpretação da Constituição fixada pelo Tribunal Constitucional, é porque tem problemas, de facto, com a própria Constituição.
Logo que foi eleito líder do PSD, em 2010, Passos Coelho, no encerramento do XXXIII Congresso do seu partido, propôs uma revisão constitucional para impedir, e cito, “que o Estado nos enfie pela goela abaixo o social que cada Governo quer”. Pouco depois, explicou que pretendia “reformar amplamente o sistema”, o que, segundo ele, e cito de novo, “com esta Constituição não é possível” (JN, 21-5-2010). Chegou mesmo a apresentar um projecto de revisão constitucional, que depois abandonou. E nesse projecto propunha eliminar do artº 53º da Constituição a proibição do despedimento “sem justa causa”, substituindo-o pela mera proibição do despedimento “sem razão legalmente atendível”. Ficou claro, desde então, o que Passos Coelho pretende, tanto para o sector público como para o sector privado: viabilizar despedimentos que não cabem no amplo conceito constitucional de “justa causa”, ou seja, viabilizar despedimentos por “causas injustas” ou arbitrárias. O que não se compreende é que Passos Coelho, tendo desistido da sua revisão constitucional (certamente inviável, no plano político), ainda assim mantenha o seu programa legislativo contra os direitos constitucionalmente protegidos. Consequência: é cada tiro, cada melro – e o resultado não podia ser outro.
E não se diga que o Tribunal Constitucional não leva em devida conta a situação financeira do País: este é o mesmo Tribunal que, atenta precisamente a situação financeira, permitiu reduções salariais na função pública desde 2011, autorizou a contribuição extraordinária de solidariedade e se expôs à incompreensão geral quando decidiu – sem que o Governo, aliás, o tivesse pedido – diferir para o ano seguinte os efeitos da inconstitucionalidade do corte dos subsídios em 2012. Só que há limites para tudo e não pode tolerar-se que a Constituição seja suspensa para viabilizar um programa ideológico radical de resposta à crise com desprezo pelos princípios elementares do Estado de Direito.
O caso dos despedimentos na função pública é exemplar. Por cinco vezes – em sucessivos acórdãos proferidos em 1986, 1992, 2003, 2001 e, agora de novo, em 2013 – o Tribunal Constitucional explicou, pacientemente, que a Constituição não impõe o “emprego para a vida” no Estado ou, mais exactamente, que “a vitaliciedade do vínculo laboral público não encontra assento constitucional”. Ou seja: a Constituição não proíbe os despedimentos na função pública. Mas o Tribunal explicou também que o emprego público não está excluído da proibição constitucional do despedimento sem justa causa. Sucede que o Governo propôs para o sector público um regime mais gravoso do que o do sector privado, em que o despedimento passaria a ser possível não por razões disciplinares ou verdadeiramente objectivas mas em função de arbitrariedades que não podiam caber, de forma alguma, no conceito constitucional de justa causa. Em suma, o Governo pretendia despedimentos na função pública por causas injustas. Travar tamanha injustiça em matéria de direitos fundamentais só pode ser uma decisão juridicamente acertada – e um manifesto sinal de bom senso.
Artigo publicado no Diário Económico