O caso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que, com uma fundamentação reconhecidamente estapafúrdia, o adultério da mulher é considerado como atenuante do crime de violência doméstica, está a revelar-se ainda mais grave do que parecia. Já nem sei o que é pior: se o próprio facto de dois magistrados de um tribunal de segunda instância, a quem confiamos a tarefa de administrar a justiça, alegarem que a sociedade “vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído” para justificarem a aplicação de uma simples pena suspensa no caso de um crime, bárbaro e premeditado, de sequestro e violência, perpetrado por dois homens contra uma mulher indefesa, com recurso a uma moca de pregos, se a forma complacente – e, portanto, cúmplice – como o sistema de justiça está a reagir ao caso.
Entendamo-nos: ao contrário do que sugeriram o Conselho Superior da Magistratura e outros responsáveis do sistema judiciário, o problema essencial do acórdão que o país discute não está na linguagem utilizada, nem nas suas expressões arcaicas, inadequadas ou infelizes. Tal como não está na invocação despropositada do Antigo Testamento ou no seu excesso de franqueza quanto às posições pessoais, ideológicas ou filosóficas dos magistrados. O verdadeiro problema do acórdão é que está errado, profundamente errado. E se erra grosseiramente na aplicação do Direito ao caso concreto é porque assume uma visão das coisas absolutamente contrária aos valores inscritos na Constituição e nas leis, que traduzem o sentimento jurídico coletivo.
Certo é que se avolumam os sinais de que aquilo que se julgava um caso isolado é, afinal, um problema sistémico. Desde logo, convém lembrar que o acordão da Relação do Porto se limitou a confirmar a decisão que já tinha sido proferida pelo Tribunal de Felgueiras, razão pela qual gerou a chamada “dupla conforme”, que impede a interposição de recurso para o Supremo. Por outro lado, vão sendo conhecidas outras decisões judiciais no mesmo sentido, com a assinatura de vários magistrados. Some-se a isto a desvalorização do caso por altos responsáveis do sistema judiciário e já se vê que erram o alvo os que pensam que o problema se resolve com meros apelos à “cautela” na redação das sentenças.
Se uma sentença errada é um problema da justiça, um sistémico funcionamento injusto da justiça é um problema político. À justiça o que é da justiça, com certeza. Mas à política o que é da política.
Artigo publicado no Jornal de Notícias