Vale a pena ler a carta que o primeiro-ministro endereçou ao secretário-geral do PS propondo uma reunião para discutir a “preservação” (!) do “consenso nacional” (?!) no cumprimento do Programa de Assistência Financeira. A leitura não deixa dúvidas:
se Passos Coelho quisesse mesmo reconstruir um consenso não escreveria uma carta daquelas.
Logo a abrir, o primeiro-ministro começa por dizer que o Memorando de Entendimento foi apenas “apoiado” pelos partidos da actual maioria enquanto foi “negociado” e “subscrito” pelo Governo do Partido Socialista – uma óbvia inverdade histórica, visto que o representante do PSD nas negociações, Eduardo Catroga, se gabou publicamente não apenas de ter “influenciado” o acordo mas também de ter sido o PSD a propor a estratégia de consolidação orçamental consagrada no Memorando e de ter “convencido” a ‘troika’ a incluir diversas medidas, incluindo a TSU.
De seguida, acreditem ou não, Passos Coelho escreve que o consenso “sempre orientou” o cumprimento das obrigações externas de Portugal – outra escusada falsidade: toda a gente sabe que o Governo optou por marginalizar ostensivamente o PS e os parceiros sociais em todas as sete revisões do Memorando.
Depois, sabendo que o PS subscreveu um pedido de fiscalização da constitucionalidade do Orçamento, o primeiro-ministro tem a feliz ideia de dedicar um parágrafo inteirinho a acusar o Tribunal Constitucional de ter “limitado” os instrumentos disponíveis para o cumprimento do Programa (repare-se: não é a Constituição que limita, é o Tribunal Constitucional…) e também de ter introduzido um “elevado grau de incerteza” quanto às “possibilidades constitucionais de cumprimento” das obrigações assumidas para a estratégia orçamental de médio prazo (leia-se: de cumprimento do Tratado Orçamental).
É com este enquadramento, todo ele cheio de tacto político, que o primeiro-ministro diz ser imperioso “explorar rapidamente novas soluções de política”, o que reclama um “diálogo” e um “entendimento” quanto às medidas que devem ser adoptadas, sob pena de incumprimento das obrigações externas e de falhanço no objectivo de regresso aos mercados.
A carta, porém, não fica por aqui. Relido o texto, Passos Coelho terá julgado, certamente, que ele se podia prestar a interpretações abusivas. De facto, estando escrito que é imperioso explorar “novas soluções de política” poderia dar-se o caso de alguém pensar que ele e Vítor Gaspar estariam disponíveis para considerar, por exemplo, “novas soluções de política”. Para eliminar as dúvidas, o primeiro-ministro acrescentou então o seguinte: “deve ser tido em conta que a nossa margem para negociar com os parceiros europeus e internacionais uma flexibilização adicional dos actuais limites dos défices orçamentais inscritos no nosso Programa de Assistência não é viável”. Ou seja: na mesma carta em que convidou o secretário-geral do PS para dialogar, o primeiro-ministro tratou de excluir à partida, por escrito, aquela que sabia ser a proposta principal do Partido Socialista!
Com os termos desta carta, Passos Coelho insiste na mesma lógica que levou ao desperdício das condições excepcionais de consenso político. E a lógica é esta: marginalizar o PS quando se trata de decidir as opções estratégicas com a ‘troika’ e notificá-lo depois, nos momentos de apuro, para caucionar ou pontualmente concertar as medidas de execução da estratégia orçamental que foi decidida à sua revelia – e que ainda por cima está errada e não funciona. É óbvio que nada disto é para levar a sério.
Ao que parece, o Governo descobriu agora que são precisos três para dançar o Tango. Lá saberá porquê. Mas é preciso lembrar que o Tango é apenas um “género” de música – tangos, propriamente ditos, há muitos. E o Partido Socialista não pode estar disponível para dançar seja qual for a música.
Artigo publicado no Diário Económico