29.06.12

Linguagem traiçoeira

Se é costume dizer, por brincadeira, que a língua portuguesa é “muito traiçoeira”, traiçoeira de verdade é a linguagem que se fala em Bruxelas nas incontáveis cimeiras europeias desde o início da crise das dívidas soberanas. E a cimeira desta semana não é excepção.

A ortodoxia dominante, de inspiração germânica, apesar de toda a sua vagarosa evolução, tem tido sobretudo a habilidade de ir integrando no seu discurso algumas das expressões daqueles que têm uma visão contrária sobre a natureza desta crise e sobre a forma de a superar. Essa “captura” da linguagem do adversário, depois distorcida no seu significado, tem muito de enganoso: sugere um progresso que tem reduzida correspondência com a realidade.

A ortodoxia dominante aceita que alguma coisa evolua na linguagem, para que nada de essencial mude nas políticas.

Veja-se o que aconteceu com o reconhecimento do carácter “sistémico” da crise. Quando se tornou insustentável manter a ideia de que este era um problema exclusivamente grego (“nos não somos a Grécia”), ou sequer um problema dos países “indisciplinados” da periferia, a ortodoxia dominante, confrontada com aquilo a que chamou “os efeitos de contágio”, dispôs-se a aceitar, finalmente, a natureza “sistémica” da crise, até como crise do euro. Só que introduziu uma interpretação correctiva: enquanto outros falavam de “falha sistémica” para caracterizar a insuficiente integração política e económica da União Económica e Monetária e as lacunas da arquitectura institucional do euro, em especial quanto à mutualização (parcial) das dívidas soberanas e ao papel do Banco Central Europeu – fragilidades exploradas pela especulação financeira – a ortodoxia dominante perfilhou a ideia de crise “sistémica” para logo a resumir, essencialmente, à insuficiência dos mecanismos de controlo da “indisciplina orçamental”. O Tratado Orçamental, com a sua “regra de ouro”, a sua fiscalização burocrática e as suas sanções automáticas, é filho desta visão redutora do problema.
O mesmo está a suceder agora com a ideia de “crescimento”.

Instada pela generalização da recessão e pelo agravamento do desemprego (que já preocupa – imagine-se! – os próprios mercados e as agências de “rating”) e muito pressionada pela mudança política em França, pelo susto na Grécia e pela crescente impaciência de Monti e de Rajoy, a ortodoxia dominante prepara-se para dar mais um salto no mesmo lugar: para além das famigeradas “reformas estruturais”, reprograma e rebaptiza fundos comunitários já previstos, promove um reforço insuficiente do capital do BEI e admite uma experiência simbólica de “project-bonds”. E é com base nisto que pretende convencer o Mundo de que está a dar toda uma “nova prioridade” ao crescimento…

Para quem ainda acredita que vai nisto mais do que um “truque” de linguagem, sugiro a leitura do ponto 4 da proposta de Recomendação do Conselho sobre “orientações gerais para as políticas económicas” dos países do euro, agendada para esta cimeira. Diz assim: “Os Estados-membros afectados por prémios de risco significativos e potencialmente crescentes devem limitar os desvios em relação às metas de saldo nominal, mesmo em condições macroeconómicas piores do que o previsto; os outros Estados-membros devem permitir que os estabilizadores automáticos actuem durante a trajectória de ajustamento assente em critérios estruturais e estar prontos a rever o ritmo da consolidação caso as condições macroeconómicas se deteriorem ainda mais”. Então e o crescimento? Dito de forma menos traiçoeira: faz que anda mas não anda.

 

Artigo publicado no Diário Económico