01.03.13

O Concílio do povo

Não temos Papa. A surpreendente resignação de Bento XVI, acompanhada do reconhecimento de que o Papa tinha já mais problemas do que forças, deixou a Cátedra de Pedro numa especialíssima situação de voluntária “Sede Vacante”.

E assim permanecerá até que, reunido o Conclave em ambiente de mistério, funcione novamente a singular “democracia dos cardeais” e o povo torne a ver fumo branco na chaminé do Vaticano.

Entretanto, para lá da especulação e da intriga que agitam os corredores da Santa Sé, esta invulgar situação de “Sede Vacante” constitui um motivo de interpelação e tem funcionado como um convite especialmente dirigido a toda a Igreja para uma reflexão atenta e para um debate aberto sobre a sua situação e a sua resposta aos desafios do Mundo de hoje. É como se, inadvertidamente, o gesto de resignação de Bento XVI tivesse convocado um verdadeiro “Concílio do povo” para pensar o presente e o futuro da Igreja, cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II.

Em bom rigor, esse informal “Concílio do povo” já começou, em particular nos debates sobre a Igreja e sobre os desafios do próximo pontificado que têm tido lugar nas comunidades e no espaço mediático, um pouco por todo o Mundo. É, aliás, o Concílio mais Ecuménico de sempre, pela simples razão de que não tem nem pode ter fronteiras, antes decorre no espaço público e nos meios de comunicação social, aberto à participação de todos, crentes e não crentes. E é muito importante que assim seja. Uma Igreja que quer estar presente na cultura contemporânea tem que ter uma palavra a dizer ao Mundo mas precisa de saber que o Mundo também tem uma palavra a dizer à Igreja. Sem esse diálogo franco, exercitado com frequência e intensidade, chega a tornar-se difícil preservar o elemento essencial de uma linguagem comum, sem a qual não poderá haver comunicação, só haverá cada vez mais afastamento.

Seria bom que os cardeais reunidos em oração na Capela Sistina, embora protegidos deste Mundo angustiado pelos muros altos do Vaticano, fossem capazes de escutar também o espírito do povo e as recomendações que lhes dirige este Concílio informal, que nenhum decreto convocou. Talvez, então, se tornassem claras algumas evidências: que a Igreja precisa de retomar o dinamismo de reforma, abertura e compromisso social lançado pelo Concílio Vaticano II; que importa reforçar a corresponsabilidade dos leigos na vida e no governo da Igreja; que é preciso que a Cúria Romana, a hierarquia e a vida das comunidades se renovem profundamente; e que é mais que tempo de resolver, de uma vez por todas, a meia dúzia de “questões fracturantes” que nenhuma boa razão mantém em aberto e só têm servido para consumir energias e provocar sofrimento, como a quase excomunhão dos recasados, o celibato dos padres, a ordenação das mulheres, o uso do perservativo e de outros meios anti-concepcionais, a avaliação da homossexualidade e algumas outras questões de moral sexual.

Talvez ouvindo o povo fosse possível aos cardeais entenderem que a Igreja tem que mudar, como mudou tantas vezes ao longo da história. E que essa mudança não representa uma capitulação diante do relativismo moral das sociedades pluralistas contemporâneas, nem significa o abandono da exigência no plano dos valores éticos e da consideração do bem comum. Pelo contrário, talvez ouvindo o povo se tornasse claro que este Mundo em crise e falho de referências está disponível para ouvir a mensagem da Igreja, desde que ela se expresse numa linguagem que se entenda, se sustente num testemunho exemplar e se liberte do ruído permanente dos escândalos, dos anacronismos e das obsessões sexuais.

Se assim fosse, talvez esta nação, que as estatísticas dizem católica e se prepara para debater a reforma do Estado, soubesse que o Papa Bento XVI, na sua última encíclica social, de 2009 (“Caritas in Veritate”) escreveu algo que lhe pode interessar: “As políticas orçamentais, com os seus cortes na despesa social, muitas vezes fomentadas pelas instituições financeiras internacionais, podem desproteger os cidadãos ante riscos antigos e novos, ameaçando as redes tradicionais de solidariedade”. E acrescentou o Papa: “razões de sabedoria e prudência sugerem que não se proclame o fim do Estado. Pelo contrário, para resolver a crise actual a sua função parece destinada a crescer, readquirindo muitas das suas competências”.

 

Artigo publicado no Diário Económico