O Governo tinha até aqui uma única narrativa, agora passou a ter duas. A primeira, diz que Portugal está “no bom caminho” e tem tido “bons resultados” porque está a cumprir o Memorando da ‘troika’.
A segunda, explica que os resultados são maus porque o Memorando da ‘troika’ estava “mal desenhado desde o início”. Como se percebe, estas duas narrativas têm um pequeno problema: são contraditórias. Uma desmente a noutra. A conclusão a tirar só pode ser esta: a vítima mais recente do Governo é a lógica.
Os partidos que estão no Governo não têm, obviamente, nenhuma legitimidade para invocar deficiências no desenho inicial do Memorando: ambos participaram nas negociações e ambos subscreveram o acordo com a ‘troika’. Concluído esse acordo, aliás, o próprio Eduardo Catroga, negociador indicado pelo PSD, fez questão de convocar uma conferência de imprensa (3-5-2011) para dizer ao País que a negociação tinha sido “essencialmente influenciada pelo PSD”. E dias depois, em entrevista ao Público, deixou dita para a história uma frase que hoje convém recordar: “Quem apresentou à ‘troika’ a estratégia de consolidação fiscal fomos nós” (11-5-2011).
Mas se os partidos do Governo não podem desresponsabilizar-se do Memorando inicial que negociaram e subscreveram, menos ainda podem agora invocá-lo para explicar os maus resultados da sua governação. E por uma razão simples: a política de austeridade que o Governo executou não corresponde à que estava prevista no “desenho inicial” do Memorando. A verdade é esta: com a sua política de austeridade “além da ‘troika'”, entretanto vertida em sete (!) revisões do Memorando, o Governo é que destruiu todos os equilíbrios conquistados na versão original.
Para se perceber a dimensão deste desvio, recomendo a consulta de um quadro que o próprio ministro das Finanças divulgou na conferência de imprensa de apresentação dos resultados da sétima avaliação da ‘troika’. Trata-se de um quadro que compara as medidas de consolidação orçamental previstas no Memorando inicial com as medidas efectivamente executadas pelo Governo. A conclusão é simplesmente aterradora: em 2012, o Memorando inicial previa medidas de austeridade no valor de 4,8 mil milhões de euros mas o Governo executou 9,6 mil milhões de euros; em 2013, o Memorando inicial previa 2,8 mil milhões de euros mas o Governo pretende aplicar 5,8 mil milhões de euros. Contas feitas, só nestes dois anos, em vez de 7,6 mil milhões de euros, o Governo propõe-se tirar à economia 15,4 mil milhões de euros! Dito de outra forma: o programa de austeridade que o Governo está a executar é mais do dobro (!) do que estava previsto no “desenho inicial” do Memorando. É isto a austeridade “além da ‘troika'”.
Sucede que já é possível dizer que esta estratégia do Governo, apesar dos enormes sacrifícios que pediu aos portugueses, foi um completo desastre. Os resultados da sétima avaliação aí estão para o provar: 6,6% de défice, 123% de dívida pública, três anos consecutivos de recessão e 19% de taxa de desemprego já este ano. Uma tragédia. Não é preciso fazer um desenho para se perceber que é urgente fazer alguma coisa.
Artigo publicado no Diário Económico