13.03.15

O jogador

Sempre que uma polémica atinge o Governo da sua família política, o Presidente da República aparece a desvalorizá-la e a remeter tudo para o submundo das “jogadas político-partidárias”.

Julgará, porventura, que encontrou uma forma muito subtil de não comentar, comentando; e de não jogar, jogando. Mas não adianta disfarçar o que toda a gente já percebeu: o árbitro tomou partido. E sabemos bem qual.

Diz-se no futebol que a melhor arbitragem é aquela que não dá nas vistas e não tem influência no resultado. O problema do Presidente da República começa justamente aqui: violou, de uma assentada, as duas regras básicas de uma boa arbitragem. Não só beneficiou sistematicamente a equipa da sua preferência (e de que é sócio) como o fez de forma ostensiva. A tal ponto que hoje não há duas opiniões sobre isso. Em vez de zelar, como lhe competia, pelo cumprimento das leis do jogo – a Constituição e o regular funcionamento das instituições democráticas – entrou em campo e fez questão de jogar. Assinalou faltas ou fez “vista grossa” segundo um critério de indisfarçável conveniência e não resistiu a dar uns toques na bola sempre que, impaciente, lhe pareceu apropriado fazer assistências ou até rematar, ele próprio, à baliza. Parecendo que não, essas coisas, num árbitro, notam-se.

A famosa interpretação minimalista de Cavaco Silva sobre os seus poderes presidenciais não passa de um mito urbano. A verdade é que o Presidente sempre teve mais vocação para jogador do que para árbitro. E nunca se conseguiu desligar completamente da sua antiga condição de primeiro-ministro, cujas funções executivas lhe falam bastante mais ao coração.

Desconsiderou, por isso, muito para lá dos limites do aceitável, as tarefas essenciais da função presidencial: a representação e promoção da unidade nacional, incluindo quanto às regiões autónomas (repetidamente posta em causa pelas investidas de Alberto João Jardim); a pedagogia da República e dos seus valores, a que era suposto presidir (permitiu, sem um queixume, a própria eliminação do feriado nacional comemorativo da República logo que encerradas as comemorações do respectivo Centenário); a promoção do diálogo político e social e o respeito pelos direitos das minorias (assistiu, impávido, à marginalização do PS nas 12 revisões do Memorando da “troika” e os seus apelos ao consenso nacional foram tardios e sempre cirúrgicos, visando mais neutralizar as oposições do que moderar a maioria absoluta); a fiscalização da constitucionalidade das leis (viu o Tribunal Constitucional desautorizar a sua conivente promulgação de orçamentos inconstitucionais, com graves prejuízos financeiros para milhares de funcionários públicos e pensionistas) e, mais do que tudo, a devida cooperação institucional com o Governo, independentemente da sua cor partidária (a lamentável “intriga das escutas”, nascida no Palácio de Belém muito antes da polémica sobre o Estatuto dos Açores, e o seu famoso discurso de posse para o segundo mandato ficarão na história constitucional portuguesa como exemplos acabados de declarações de guerra contra o Governo legítimo em funções; o uso e abuso de dois pesos e duas medidas na consideração dos “limites para os sacrifícios exigidos ao comum dos cidadãos”, consoante a cor política do Governo, confirmam uma mais do que evidente falta de isenção).

Ao longo dos mandatos de Cavaco Silva, a magistratura de influência, típica da função presidencial, degenerou, primeiro, numa certa visão presidencialista da cooperação estratégica entre Presidente e Governo – em que o Presidente ambiciona definir a estratégia executada pelo Governo ou aceita cooperar apenas na medida em que concorde com a estratégia governativa – e, depois, quando o Presidente se converteu em verdadeiro patrocinador da solução política saída da crise de 2011, numa magistratura dita “activa”, filha de um certo tipo de bicefalismo no poder executivo que o sistema de governo previsto na Constituição portuguesa de modo nenhum consente.

Tudo visto, não surpreende que o Presidente da República tenha tão baixas taxas de popularidade – as mais baixas da história democrática portuguesa, numa função que era tradicionalmente consensual e se pretende acima das divisões partidárias. A razão é simples: ninguém quer um jogador para árbitro. É por isso que sempre que ele apita, o público nas bancadas ergue-se num enorme coro de assobios. E a coisa já não tem remédio: com este árbitro, vai ser assim até ao fim do campeonato. E da carreira.

 

Artigo publicado no “Diário Económico” de 13 de março e na sua edição online.