Se as negociações à esquerda forem bem sucedidas, como é perfeitamente legítimo que aconteça, o quadro político-parlamentar decorrente dos resultados eleitorais será absolutamente inédito na democracia portuguesa.
Sendo assim, revisitar a história à procura de precedentes é como ir à caça de gambozinos.
Comecemos pelo básico: ao contrário do que se apressaram a dizer algumas vozes mais precipitadas, não existe de todo na Constituição portuguesa, nem no espírito do nosso sistema de governo, nem sequer nos precedentes estabelecidos na nossa história democrática a tão falada e sugestiva regra “quem ganha, governa”, cujo pretenso corolário, no caso presente, seria a fantástica “obrigação” do Partido Socialista viabilizar um Governo da direita para executar uma política que não tem o seu acordo. Como está bem de ver, não é assim que as coisas funcionam. O que a Constituição determina, de forma sábia, não é que o Presidente da República tem necessariamente que nomear como primeiro-ministro o líder do partido mais votado mas sim que essa nomeação deve ocorrer “ouvidos os partidos” com assento parlamentar e “tendo em conta os resultados eleitorais”.
Naturalmente, ter em devida conta os resultados eleitorais implica averiguar primeiro, como está a ser feito na fase em curso, se o líder do partido mais votado é capaz de reunir as condições políticas para formar um governo viável, e de preferência estável, no novo quadro parlamentar. Todavia, se não for capaz – o que pode ficar irremediavelmente claro logo na audição dos partidos pelo Presidente da República, no início da próxima semana – impõe-se poupar o País a manobras dilatórias ou cerimoniais inúteis e averiguar de imediato, sempre em nome do critério constitucional de respeito pelos “resultados eleitorais”, se há outra força política em condições de liderar a formação de um governo viável, e de preferência estável, no novo quadro parlamentar, porventura até suportado por uma maioria absoluta comprometida com um acordo formal para toda a legislatura. Se tal solução política estiver disponível, respaldada por uma declarada maioria parlamentar (ainda que não integrando o partido mais votado), não há que ter dúvidas: é obrigação constitucional do Presidente da República nomear um tal Governo. E a razão é simples: uma eventual recusa por parte do Presidente, para além de sujeitar o País a uma perigosa e escusada trapalhada institucional, significaria rejeitar dar consequência aos resultados eleitorais. Dito de outro modo, o Presidente estaria a violar a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir.
Acresce não há motivo para dramas. Basta um breve olhar para o que se passa em várias outras democracias europeias para perceber que o que aqui nunca tinha acontecido é hoje bastante comum e aceite com naturalidade por essa Europa fora. Na Dinamarca, no Luxemburgo, na Letónia e na Noruega, por exemplo, os partidos mais votados nas eleições estão hoje fora do Governo precisamente porque o quadro parlamentar determinado pelos resultados eleitorais possibilitou outras soluções governativas mais estáveis, umas vezes lideradas pelo segundo partido mais votado (Dinamarca, Letónia e Noruega), outras vezes pelo terceiro (Luxemburgo) ou até pelo 5º (como sucede na Bélgica, onde o partido mais votado integra a coligação governamental mas em posição subalterna).
Contra este ensinamento do direito constitucional comparado, de nada serve invocar uma imaginária e singular “tradição portuguesa”, que explicaria porque é que até hoje os governos em Portugal – de maioria absoluta, de coligação ou minoritários – foram sempre liderados pelo partido mais votado nas eleições. Pretender que essa “tradição” existe é ignorar a novidade absoluta do novo quadro político: a possibilidade, que nunca antes tinha ocorrido, de se formar um governo com uma clara maioria parlamentar sem envolver o partido mais votado. Não há, pois, nenhuma “tradição portuguesa” e muito menos existe uma regra automática segundo a qual “quem ganha, governa”. O que há, isso sim, é um dever de respeito pelos resultados eleitorais e pela capacidade de entendimento entre os partidos no novo quadro parlamentar que, sendo inédito, desautoriza todos os precedentes.
Artigo de opinião publicado no Diário Económico de 16 de outubro e na sua edição online.