Faz por esta altura 15 anos que Portugal teve a lucidez e a ousadia de aprovar a lei de descriminalização da droga, no seguimento da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga que tive a honra de redigir e que foi aprovada pelo primeiro Governo Guterres, em 1999, quando Sócrates era ministro Adjunto com a tutela da toxicodependência. O balanço não suscita dúvidas: a descriminalização da droga foi um sucesso e a experiência portuguesa é hoje uma referência a nível internacional.
O que hoje parece uma banalidade – tratar os consumidores como toxicodependentes, não como criminosos – não era evidente há uns anos. A própria comissão nomeada para estudar o assunto propôs apenas a descriminalização do “consumo privado” de drogas, bem como da posse de estupefacientes para esse consumo (o que significaria manter como crime o consumo “em público” e toda a posse de drogas fora do contexto do consumo privado). A ser essa a solução, qualquer pessoa intercetada na via pública com droga na sua posse, ainda que para fins de consumo, continuaria a correr o risco de ser tratada como criminosa.
Foi por isso que, explorando até ao limite a margem consentida pelas convenções internacionais, de matriz proibicionista, propus uma solução mais arrojada: a descriminalização do consumo e da posse de drogas para consumo, sem distinguir entre consumo público ou privado (para garantir que a posse de pequenas quantidades de droga nunca seria criminalizada). E uma vez que a proibição era imposta pelas convenções internacionais, propus que em vez da criminalização se consagrasse um regime contraordenacional, em que as coimas seriam substituídas por medidas mais adequadas, incluindo o tratamento dos toxicodependentes. António Guterres, honra lhe seja, percebeu logo o que estava em causa e não precisei de mais do que um minuto para o convencer da bondade desta revolução estratégica no combate à droga.
Pode dizer-se que a heroína é a principal vítima do sucesso da descriminalização da droga, em aliança com as políticas de “redução de danos”, prevenção, tratamento e reinserção social, na linha da estratégia desenhada em 1999 e executada sob a liderança competente de João Goulão. Os resultados estão à vista: o número de consumidores problemáticos de heroína desceu para metade, diminuiu o número de mortes por overdose e caiu a taxa de infeções por VIH e sida. Além disso, o estigma que recaía sobre os toxicodependentes deu lugar a uma nova atitude social, proporcionando a muitos jovens o acesso à ajuda necessária, em vez de serem atirados para o absurdo calvário do banco dos réus ou das prisões, lado a lado com os traficantes. A descriminalização da droga cumpriu, pois, os seus desígnios humanistas: foi eficaz na luta contra a toxicodependência e fez de Portugal uma sociedade mais segura, mais decente e mais justa.
Artigo publicado no Jornal de Notícias