As declarações do Comissário Olli Rehn sobre um alegado pedido tardio de ajuda externa por parte de Portugal são frontalmente desmentidas pelos factos. Mas é preciso compreender o contexto desta tentativa desesperada de rescrever a história.
No Parlamento Europeu, convém lembrar, o Comissário Olli Rehn é o rosto da ‘troika’ e está sob o fogo de uma acusação pesada: a de ser co-responsável, com Barroso e Merkel, pela resposta desastrada da Europa à crise grega e pela dureza de uma política de austeridade que agravou os problemas e falhou no seu objectivo de impedir que a especulação financeira arrastasse as dívidas soberanas num impiedoso (e lucrativo) “efeito dominó”. Olli Rehn suspeita que a história não será meiga com a resposta da Europa à crise – e tem razão. Para além das óbvias insuficiências na construção do euro, que já ninguém contesta, Olli Rehn sabe que o consenso geral diz que a Europa podia e devia ter cortado o mal pela raiz, logo que os mercados escolheram a Grécia como primeiro alvo. Tal como sabe que esse erro, cometido à medida dos interesses de uns contra os interesses dos outros, provocou muito sofrimento inútil e trouxe o projecto europeu até à beira da ruptura. Embora Durão Barroso, animado pela liquidez artificial nos mercados financeiros, se tenha apressado a decretar o fim da crise do euro, Olli Rehn sabe que a economia europeia está agora ainda menos forte do que estava no início da crise. E conhece o indicador que, em vésperas de eleições, todos se esforçam por ignorar: ao fim de três anos de austeridade, o nível médio da dívida pública na zona euro atingiu cerca de 93% do PIB, valor que é sensivelmente o mesmo (!) que Portugal apresentava em 2010 quando, por entre gritos de pânico, soaram as campainhas de alarme.
É, pois, em defesa própria que Olli Rehn, desafiando os factos, se lembrou de tentar rescrever a história: afinal, “a Europa respondeu bem à crise”, sugeriu ele, “Portugal é que respondeu tarde”. Se a primeira tese não tem, por razões óbvias, muitos compradores na Europa e menos ainda nos Estados Unidos, já a segunda encontrou em Portugal a clientela do costume, sempre disposta a aproveitar as ofertas de ocasião.
Acontece que a resposta de Portugal à crise foi sempre concertada pelo Governo português com a Comissão Europeia e com o senhor Olli Rehn. Quer quando, no auge da grande recessão de 2009, foram decididas medidas de apoio social e estímulo à actividade económica que implicaram o agravamento do défice e da dívida; quer quando, em 2010, no início da crise das dívidas soberanas, Portugal acompanhou a mudança de estratégia da Comissão e adoptou sucessivos pacotes de medidas de controlo do défice (com os chamados PEC I, PEC II e PEC III). Tal como foi com o apoio da Comissão Europeia que foi proposto, em Março de 2011, o PEC IV, entendido como alternativa a um pedido de ajuda externa.
Felizmente, nada disto é hoje matéria de opinião. Está tudo por escrito. Foi por escrito que, a 11 de Março de 2011, o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e o Presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, fizeram a seguinte Declaração Conjunta sobre o PEC IV: “We welcome and support the announced policy package”. Foi por escrito que a Bloomberg relatou a entrevista de Olli Rehn ao jornal Finlandês “Helsingin Sanomat” em que o Comissário, no próprio dia da rejeição do PEC IV, ainda dizia: “Não é certo que Portugal precise de ajuda externa”. Foi por escrito que o Público citou o testemunho na primeira pessoa do Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa: “Testemunhei que a Comissão Europeia e o BCE não queriam que Portugal fizesse um pedido de assistência financeira, igual ao grego e ao irlandês, e estavam empenhados na aprovação do PEC IV” (Público, 31-3-2012). E foi por escrito que o Diário Económico transcreveu uma entrevista de Eduardo Catroga, que agora apareceu a dizer que Portugal devia ter feito uma “negociação mais atempada”, mas que 15 dias antes da apresentação do PEC IV dizia: “Não defendo, nas actuais circunstâncias de acesso, o recurso ao FEEF em parceria com o FMI, porque as experiências da Grécia e da Irlanda correram muito mal” (DE, 21-2-2011).
Numa coisa Olli Rehn tem razão: Portugal só pediu ajuda externa quando foi encostado à parede. E bem. A história ensina que nenhum país pede ajuda externa a não ser quando é absolutamente necessário. Mas o apoio expresso da Comissão Europeia e do BCE ao PEC IV continha uma mensagem clara: não encostem Portugal à parede. O problema é que por cá houve quem achasse que tinha uma ideia melhor.
Artigo publicado no Diário Económico