A mentira e a demagogia estão a envenenar o debate público sobre a importantíssima Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla inglesa) que está em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos da América.
Certamente, faz todo o sentido exigir transparência nas negociações e reclamar um acordo justo e equilibrado, que garanta a efectiva salvaguarda dos padrões europeus de protecção dos direitos sociais e laborais, do ambiente, da segurança alimentar e dos direitos dos consumidores. Tal como faz sentido zelar para que o regime de protecção do investimento não resulte em limitação ilegítima do direito dos Estados a produzirem novas regulamentações em defesa do interesse público. É precisamente isso o que tem exigido o Parlamento Europeu em sucessivos pronunciamentos, numa tomada de posição que terá de ser levada em conta porque, desde o Tratado de Lisboa, é o Parlamento Europeu que tem o poder de, no final, aprovar ou rejeitar este tipo de tratados.
Portanto, uma coisa é certa: o acordo só entrará em vigor se o Parlamento verificar que foram cumpridas as suas exigências, que por sua vez correspondem às preocupações de muitos cidadãos.
O que não faz sentido é enganar as pessoas para semear o pânico e deitar por terra uma negociação de enorme importância geostratégica para a Europa e com consideráveis potencialidades não só para o crescimento económico e o emprego, mas também para criar um exigente quadro de referência regulatório para a globalização. Aliás, dado o impasse que se arrasta há décadas na Organização Mundial do Comércio, os adversários do TTIP deviam explicar qual é a alternativa a uma regulação da globalização negociada com os Estados Unidos. Na verdade, não se vê como é que um acordo com a China poderia conduzir a padrões sociais e ambientais mais elevados, nem se vê o que é que a União Europeia teria a ganhar com um padrão regulatório definido não com a sua participação directa, num acordo entre as duas maiores economias mundiais, mas sim, como está em vias de acontecer, através da Parceria Transpacífica que os Estados Unidos têm vindo a negociar directamente com o Japão, a Austrália e outros países da região Ásia-Pacífico.
Não é sério insistir na alegada opacidade da negociação do TTIP como se nada tivesse evoluído e este não se tivesse tornado no mais aberto e participado processo negocial de que há memória na história das relações internacionais (é público o mandato negocial; são públicos ou estão acessíveis para consulta os próprios textos jurídicos propostos na mesa das negociações pela Comissão Europeia; cada ronda negocial é sujeita a escrutínio por parte do Parlamento Europeu). Tal como não é aceitável que se mantenham dúvidas e temores quanto a questões já esclarecidas (como o suposto perigo de importação de carne com hormonas, que não vai acontecer) ou que se decrete uma avaliação global negativa quanto a um acordo cuja versão final está longe de estar estabelecida. Há, certamente, preocupações legítimas e essas devem ser atendidas. Mas também há muito preconceito puramente ideológico, que releva da demagogia panfletária anti-americana ou de uma sistemática oposição à abertura e regulação do comércio internacional – e é preciso separar o trigo do joio.
De entre todas as questões, a controvérsia a propósito do TTIP centrou-se no mecanismo de arbitragem privada, como forma alternativa (não judicial) de resolução dos litígios entre os investidores e os Estados (ISDS na sigla inglesa, de invester-state dispute settlement). A arbitragem privada consiste, no essencial, em submeter o litígio a um tribunal “ad hoc”, constituído por três árbitros, sendo um indicado por cada uma das partes e o terceiro escolhido de comum acordo. Trata-se um mecanismo previsto em cerca de três mil acordos bilaterais de investimento, 1.400 dos quais com a participação de Estados-membros da União Europeia. É preciso reconhecer que este sistema não tem funcionado bem e tem permitido crescentes abusos: não é suficientemente transparente, não permite evitar a captura dos árbitros por conflito de interesses e não assegura (até porque as decisões são irrecorríveis) uma resolução justa e previsível dos litígios. Só há uma solução razoável: eliminar a arbitragem privada e excluí-la das negociações do TTIP. Em alternativa, a Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu aprovou a proposta de um sistema totalmente novo: em vez de tribunais “ad hoc”, uma instituição permanente; em vez de árbitros (muitas vezes advogados) indicados pelos privados, juízes profissionais indicados pelos Estados; em vez de decisões irrecorríveis, a garantia de uma instância de recurso. Com este novo sistema, pelo qual se bateu o grupo Socialista, a arbitragem privada está morta – assim a proposta seja aprovada, como espero, no Plenário do Parlamento Europeu.
Curiosamente, o que parece dividir opiniões não é tanto a adopção deste novo modelo de resolução de litígios (que recebeu um apoio suficiente nos diferentes grupos políticos) mas sim o grau de clareza sobre a natureza da solução encontrada. Isto é, se devemos dizer e escrever a verdade: a arbitragem privada tem de acabar. Acontece que no ponto a que chegou o debate público, a clareza não é uma questão menor. Bem pelo contrário: no debate do TTIP, esta é a hora da verdade.
Artigo publicado no Diário Económico