Para começo de conversa, convém recordar a alguns espíritos mais desatentos que na origem desta súbita convulsão politica e social contra o Governo não está nenhuma medida de austeridade destinada a reduzir o défice nas contas públicas, ou a cumprir o Memorando a que o País está vinculado, ou sequer a satisfazer uma exigência da ‘troika’ ou do Tribunal Constitucional.
Por muito que isso custe aos que se especializaram em deitar culpas de tudo para os outros, e em especial para o governo anterior, o que está aqui em causa, antes do mais, é uma medida livremente escolhida pelo actual Governo: descontar um mês de salário a todos os trabalhadores para oferecer às empresas (sejam elas quais forem) a redução da Taxa Social Única (TSU). Foi contra esta injustiça grosseira e contra este monumental disparate económico que o País inteiro se levantou.
Acontece que esta medida, mais do que qualquer outra, teve o efeito de revelar aos portugueses a verdade sobre quem nos governa. Os portugueses puderam ver, em directo e ao vivo, que o primeiro-ministro tentou justificar esta medida insuportavelmente violenta para as famílias com estudos que até hoje ninguém viu e com previsões em que ninguém acredita, nem pode acreditar – sobretudo depois de se perceber que os resultados pretendidos dependem todos do sucesso dos apelos pungentes do primeiro-ministro aos empresários para fazerem o favor de baixar os preços…
Mas esta medida não revelou apenas a ligeireza, a impreparação e falta de bom senso do primeiro-ministro: expôs também, à luz do dia, e de forma definitiva, toda a verdade sobre aquela que é a orientação política que guia desde o início a acção do Governo PSD/CDS: uma estratégia clara de empobrecimento, executada através de uma austeridade brutal, muito além da ‘troika’, sem nenhum horizonte que não seja um decepcionante modelo de baixos salários. É a tomada de consciência colectiva desta estratégia absurda e sem futuro – escandalosamente escondida na última campanha eleitoral por entre muita conversa contra o aumento dos impostos e as “gorduras do Estado” – que suscita agora uma indignação profunda, que ameaça gravemente as condições de aplicação do programa de assistência financeira e já abala a própria coligação.
Os danos causados pelo primeiro-ministro são provavelmente irreparáveis. Mas alguma coisa é preciso fazer. E a primeira de todas parece óbvia: recuar. E recuar, neste caso, significa uma única coisa: desistir da ideia de baixar a TSU das empresas à custa dos trabalhadores. Por estranho que pareça, o primeiro-ministro continua a não dar sinais de ter percebido a dimensão do sarilho que arranjou. Ao fim de duas semanas de contestação geral, insiste ainda em “modelar” apenas a medida, de modo a não atingir os trabalhadores de mais baixos rendimentos. Quando muito, parece admitir uma estrutura progressiva das taxas contributivas aplicáveis aos trabalhadores.
A ideia parece ser esta: mudar alguma coisa para que o essencial continue na mesma. Ora, sejamos claros: “modelar” não é “recuar”.
Pode até compreender-se que o primeiro-ministro, depois de anunciar solenemente esta medida ao País e de ter sido desafiado ostensivamente pelo seu próprio parceiro de coligação, pretenda ainda preservar a sua imagem de autoridade e salvar a face. Mas, como já alguém disse, a política é a arte do possível. E a prioridade do primeiro-ministro, nesta situação, não poder ser salvar a face. O seu dever primeiro é outro: salvar o Governo, dando ouvidos ao País.
Artigo publicado no Diário Económico